Baixar impostos sobre os alimentos? Sim ou Não?

Em debate, José Camolas, nutricionista, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e doutorado em Ciências da Saúde, e João Espanha, jurista e fiscalista.

Devem ser reduzidos os impostos sobre todos os alimentos? Se baixarem os impostos, os portugueses serão mais saudáveis?
Em debate, José Camolas, nutricionista, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e doutorado em Ciências da Saúde, e João Espanha, jurista e fiscalista.

“É preciso baixar os impostos de alimentos saudáveis”

É um cliché dizer que a alimentação pode ser terapêutica, médica, mas ela é, sobretudo, preventiva. Quando nós verificamos o impacto que a inflação teve no aumento dos preços e, particularmente, em alguns alimentos que são fundamentais para a saúde dos indivíduos, como é o caso da fruta e dos legumes, tem de haver aqui medidas que possam aliviar o preço ao consumidor.
Temos isso, por exemplo, na medida do IVA-zero nalguns produtos alimentares que, apesar de tudo, mitigou relativamente o preço ao consumidor desse grupo de alimentos assim como vemos, em sentido inverso, a taxação de alguns alimentos que têm grandes quantidades de açúcar, o que reverteu, no fundo, numa redução do consumo desses mesmos alimentos e numa redução do consumo de açúcar.
Portanto, temos aqui esta dualidade. O que dizemos não é que temos de reduzir a carga fiscal sobre todos os alimentos, mas, necessariamente, é preciso diminuir o preço que as pessoas pagam por alimentos que podem ser fundamentais para o seu estado geral de saúde.
Definitivamente, não pode ser uma política cega. Não se pode nivelar todos os alimentos pela mesma taxação ou pelo mesmo valor de IVA. Terá, necessariamente, de ser uma política que é enformada por critérios de saúde, por critérios de indicadores nutricionais, com critérios de indicadores de proteção da saúde.
É absolutamente inquestionável que, se nós não tornarmos mais acessíveis os alimentos que são protetores da saúde, aquilo que as pessoas têm é que fazer uma gestão do seu orçamento e, necessariamente, vão decidir por aquilo que é mais barato e não por aquilo que é mais saudável.
Espero, naturalmente, que, seja quem for o governo em 2024, tenha esta sensibilidade de perceber não há soluções fáceis para problemas complexos, seja pela questão do IVA, seja pela questão da taxação.
Há muito que é preciso, nesta área, mudar aquilo que são hábitos e comportamentos e acesso aos alimentos das pessoas. Por exemplo, na oferta alimentar, logo à partida, nas escolas e nos refeitórios públicos.
Aguardamos que a União Europeia se resolva em relação à rotulagem simplificada e que nos diga definitivamente qual é o modelo porque sabemos que isso facilita o acesso dos consumidores a alimentos mais adequados.
Mas é preciso, neste compromisso que também se faz com o tecido económico ou com as empresas, continuar a trabalhar na reformulação dos alimentos, torná-los mais adequados, com menos açúcares, com menos gorduras saturadas, com menos sal. Este é um trabalho conjunto e estratégico, que senta as pessoas à mesa, os diversos atores, e que os coloca na sintonia possível.

“Os impostos não devem servir para engenharia social”

Os impostos servem uma função primacial que é financiar o Estado. Como dizia um juiz do Supremo Tribunal norte-americano, os impostos são o preço da civilização. Todos temos de pagar impostos de acordo com a nossa capacidade contributiva. Isso também foi algo que foi introduzido no século XIX e que faz a diferença entre o que é imposto e o que é confisco… embora o Estado português, muitas vezes, caia para o lado do confisco, mas não vamos por aí.
Não me agrada que a ferramenta fiscal seja utilizada para fazer engenharia social e o IVA é um imposto bastante complicado. Ele é simples na sua ideia e estrutura, mas deve ser pouco complexificado porque quanto mais se misturam as coisas, mais difícil se torna a sua aplicação.
Há pouco tempo tive um caso muito interessante em que discutimos bravamente com a Administração Tributária e com o Tribunal se um concentrado de fruta pagava a mesma taxa que uma fruta. Este tipo de discussão deve ser totalmente evitado. O IVA é um imposto de matriz comunitária, relativamente ao qual os Estados não têm grande margem de manobra.
É verdade que os alimentos, em geral, fazem parte da lista de produtos aos quais é permitido aplicar uma taxa reduzida, mas, ao contrário do que defende o José, eu seria tudo ou nada, porque quanto mais se tenta especificar taxas de IVA para determinadas categorias de alimentos, mais confusão se lança, mais se complexifica o sistema e torna-se uma coisa muito difícil de gerir, o que provoca grandes perturbações no mercado.
O IVA pode ser um imposto muito pouco razoável para os comerciantes porque basta um engano e os volumes são uma coisa absolutamente louca e pode fazer a diferença entre o sucesso económico e a insolvência imediata. E isso não é algo com que se possa ou deva brincar. O IVA é um imposto regressivo. Porquê? Porque pesa mais a quem menos tem.
O IVA não é específico da União Europeia, existe em muitos Estados como a Nova Zelândia, e é um imposto que pesa mais aos menos abonados porque a maior percentagem do seu rendimento é destinada à aquisição de produtos básicos.
Normalmente, os alimentos na União Europeia beneficiam de uma taxa reduzida ou mínima. Tanto quanto consegui perceber, a taxa mais reduzida em toda a União Europeia é no Luxemburgo e não me parece que no Luxemburgo se passem tantas dificuldades como em Portugal. Isto para lembrar que não existe harmonia a este respeito, ao nível da União Europeia.

“A maior parte da alimentação já paga 6%, que é a taxa mínima aplicável”

João Espanha – Ao nível do IVA, a harmonização tem de existir, mas, no que diz respeito à aplicação de taxas reduzidas aos bens e serviços que estão elencados no anexo III à Diretiva do IVA, os Estados têm liberdade para fazê-lo. Acho que Portugal abusa dessa liberdade porque cria temas que geram as discussões mais incríveis e bizantinas como, por exemplo, um pastel de nata que, adquirido dentro de uma caixa, paga IVA a 23%, mas se for servido num prato já paga IVA a 6%. Este tipo de coisas tem de ser completamente afastado!
Em Portugal, a maior parte da alimentação já paga 6% que é a taxa mínima aplicável. Portanto, não vejo que mais se possa ou deva fazer, sob pena de continuarmos a complicar algo que não deve ser complicado.

– A variável da saúde tem sido tida em conta pelos governos?
José Camolas — Esta questão da complexidade é algo a que temos de ser sensíveis e as tomadas de decisão entram sempre em linha de conta com o quão complexo fica o sistema, se acrescentamos variáveis.
Resumo em meia dúzia de ideias simples. Nós vemos que mais ou menos 60% da população portuguesa tem peso a mais, nos adultos, e mais ou menos 30% das crianças.
Vemos que a doença cardiovascular é a principal causa de morte, nos países desenvolvidos em geral e em Portugal também. Vemos na mesma medida, por exemplo, as prevalências de diabetes com tendência para aumentar e vemos os custos em saúde para tratar estas doenças.
A alimentação adequada tem a ver com a capacidade aquisitiva do consumidor de ter uma alimentação adequada… Eu percebo que, para o decisor político, não poucas vezes se têm de tomar decisões num horizonte temporal do ciclo eleitoral.
Mas, se queremos usar exemplos de casos bem-sucedidos, vemos que, por exemplo, no norte da Europa têm pactos de regime há 20-30 anos nesta área.
Aliás, não deixa de ser engraçado, gostamos de puxar a nós aquele mérito de sermos também um dos exemplos da dieta mediterrânica, mas somo-lo cada vez menos.
Quando vemos a adesão à dieta mediterrânica, ela é quase vestigial em Portugal. No entanto, vemos, por exemplo, os países do norte da Europa a assumirem um pacto entre si, a chamada dieta nórdica, que vai além das recomendações em termos nutricionais, já que tem também aqui compromissos de sustentabilidade e de proteção do mercado interno.
No fundo, mais do que um custo, o investimento no acesso a um consumo alimentar adequado e informado é, sem dúvida alguma, um investimento, não é um custo.
Claro que não dá frutos no curto ciclo, mas é por demais evidente o impacto que tem no longo termo na proteção da saúde, na melhoria da qualidade de vida das populações e na melhoria de indicadores económicos e sociais.
Não sou eu que o digo, é a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico]. Se nós tivermos melhores indicadores de saúde e melhor alimentação, temos menos absentismo e temos menos reformas precoces.
Quanto a esta questão de usarmos ou não ferramentas fiscais, de usarmos ou não o orçamento do Estado como uma alavanca daquilo que é não só a melhoria do estado geral de saúde ou do estado nutricional, mas a melhoria da qualidade de vida das populações, acho que não fica dúvida nenhuma de que nós temos de ter mais um pensamento de longo termo, olhando mais não para aquilo que somos hoje, mas para aquilo que queremos ser amanhã.

José Camolas: “Há empresas do setor alimentar com influência política”

– Há lobbies fortes, nos refrigerantes ou nos produtos processados, que tentam demonstrar que esses produtos não têm um efeito tão negativo para a saúde. Mas referiu que os portugueses não estão assim tão fãs da dieta mediterrânea e estão a ficar com mais diabetes e mais obesos.
JC — Grande parte dos padrões ancestrais, como é o caso da dieta mediterrânica, eram padrões de subsistência, em harmonia com o ambiente envolvente.
A partir do momento que os mercados se tornam globais, vamos tendo uma internacionalização de padrões dietéticos. Algumas empresas do setor alimentar têm capacidade de influência política e orçamentos que vão além dos orçamentos de alguns Estados.
Nós não devemos ir atrás do preconceito ideológico e dizer que tudo o que é transformado é mau. Não é tão linear, mas há critérios de qualidade nutricional que podem ser utilizados para tomadas de decisão. É claro que depois há áreas cinzentas. É costume dizer-se que o diabo está nos detalhes… Mas há perfeita capacidade técnica e científica.
Os profissionais de saúde comungama ideia da alimentação como elemento também ele terapêutico e preventivo. Foi o pai da Medicina, Hipócrates, que terá dito “faz do teu alimento o teu medicamento”. Há ferramentas e critérios relativamente consensuais que podem ser mais harmonizados e que podem alavancar esta proteção da saúde e informar para estas tomadas de decisão. Lá está, temos de ir para eles despidos de preconceitos.

José Camolas: “O acesso a um consumo alimentar adequado é um investimento, não um custo”

João Espanha: “Falta uma política fiscal. Todos precisamos de pagar impostos”

Quando se falou da hipótese de colocar uma taxa zero para os bens essenciais, designadamente para a alimentação, estávamos num período não de hiperinflação, mas de uma taxa de inflação muito elevada em muito pouco tempo. Curiosamente, o Governo veio dizer não, nem pensar, porque não se mexe no IVA. Porque é que não se mexe no IVA? Porque o IVA é um imposto ótimo para cobrar. Ninguém foge ao IVA. O IVA é pago pelo consumidor final e na fatura para o consumidor final vai IVA. E, portanto, ele paga e isto para o Estado é magnífico.

— Ajuda às contas certas.
JE — Ajuda às contas certas. Aliás, as nossas receitas são sobretudo IVA e IRS sobre os pensionistas e os trabalhadores dependentes porque é quem não pode fugir. Fugir não no sentido negativo do termo. Obviamente as pessoas adaptam os seus comportamentos na tentativa de pagarem o mínimo de imposto possível. É a vida, não há nada a fazer. O IVA tem cobrança garantida, o IRS tem cobrança garantida. E, portanto, são os dois grandes pilares da receita tributária em Portugal. Quando o Estado veio dizer não, não, IVA-ZERO nem pensar nisso, eu que sou contra medidas particulares para salvar situações sociais, entendi que naquele momento em concreto e por aquelas razões, o IVA 0% fazia todo o sentido. Porquê? Por causa do tal fenómeno de regressividade do imposto. Quem estava a levar com a talhada de inflação eram as pessoas com menos recursos. Como o IVA é um imposto que impacta as pessoas com menos recursos, estava na altura de, temporariamente, fazer ali um certo alívio. Mas esse pequeno alívio custou qualquer coisa como 600 ou 700 milhões de euros. Não podemos perder essa perspetiva que é todos precisamos de pagar impostos que são necessários para o Estado funcionar.
Não vou discutir do ponto de vista ideológico se deve carregar mais aqui ou carregar mais ali. Agora, não podemos é pensar que podemos utilizar a ferramenta fiscal, a nosso bel-prazer, de acordo com as circunstâncias do momento, para servir um determinado objetivo político. Deve haver uma política fiscal que, infelizmente, não temos há muito tempo.
Basta atentar no que se passou quando terminou o Governo do Dr. Passos Coelho e passámos para o Governo do Dr. António Costa. Havia um compromisso, um pacto de regime, para se reduzir o imposto sobre as empresas e a primeira coisa que o Dr. António Costa fez foi rasgar o pacto. Assim, não há política fiscal que resulte ou que se possa conceber.