Saúde: “A gestão da pandemia foi um desastre”, critica ex-ministro de Costa

Os serviços devem ser prestados, sobretudo, pelos privados e pelo setor social? Sim ou não? Helena Canhão, diretora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova, e Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde e professor na Escola Nacional de Saúde Pública, apresentam a sua visão sobre o futuro do sistema.


“É necessária uma reforma e pensar no financiamento”

HELENA CANHÃO

Professora e Reumatologista

Nós precisamos mesmo de reestruturar o sistema, de olhar para o sistema de saúde como um todo e não como está a ser feito; de forma sectorial que é olhar separadamente para o privado, para o SNS (Serviço Nacional de Saúde) e de forma isolada e não enquadrada no ensino superior dos profissionais de saúde e no setor social. É necessário fazer uma reforma, pensar no financiamento, não necessariamente de uma forma trágica, ou seja, passar apenas de financiador para prestador.

Mais do que isso, é avaliar todo o sistema onde estão os recursos, onde está a qualidade na prestação e aproveitar todo esse sistema para melhorar os cuidados à população. O que nós queremos é uma população mais saudável, com uma promoção de saúde eficiente, mas também uma prevenção secundária de quem já é doente, querendo evitar as complicações e depois, no final, reabilitar. O Estado pode, em algumas áreas, ser um prestador muito bom; noutras áreas, deve otimizar e permitir que quem presta bem otimize esses cuidados, quer no setor de saúde, quer no social e depois pensar também na educação dos profissionais de saúde.

Os cuidados de saúde primários têm de começar cada vez mais a ser preponderantes na assistência às pessoas, ser a primeira porta e ser o primeiro pensamento de alguém que precisa de consultar um médico. Para isso, é preciso trabalhar a marca dos cuidados de saúde primários. É preciso que as pessoas tenham confiança nos médicos que estão nesses cuidados em frente ao doente e encontrar as melhores formas de se ter esse contacto.

Com as novas tecnologias haverá uma simplificação, se ela for bem feita, do acesso ao sistema, com uma triagem que até pode ser eventualmente feita com um enfermeiro ou outro profissional de saúde e um encaminhamento para os locais que são mais adequados à necessidade do doente.

Há aqui uma série de fatores e isto é uma situação complexa que não se resolve apenas a pôr mais dinheiro em cima da mesa, que é muito importante, mas é preciso olhar igualmente para a qualidade dos serviços prestados e trabalhar num ambiente de qualidade.


“O que mata o SNS não é a falta de médicos, é a burocracia”

ADALBERTO CAMPOS FERNANDES

Professor de políticas públicas de saúde

Enquanto país do sul da Europa, que não é rico, temos feito muito pela saúde ao longo dos últimos anos, pelo que o ponto de partida é positivo. O que nos tem feito falta no setor da saúde é um desígnio, que nos centre nas necessidades das pessoas em concreto e nos afaste desta tentação de fazer do debate uma querela, uma briga, um território de trincheira. Tenho dito, muitas vezes, que a saúde não é uma questão de regime; é uma questão de Estado que tem de ser pensada e trabalhada a 20 / 30 anos. E, naturalmente, pensada pelos atores políticos que têm uma maior probabilidade de ser governo e de conduzir o país.

Não deve ser algo que se divida em metades. Deve ser uma zona de largo consenso da sociedade portuguesa porque a saúde é um bem demasiado importante para todos para ser alvo de combate político. E nós podemos combater politicamente em muitos outros territórios, isso faz falta. Agora, a saúde não é isso; é algo que os portugueses percecionam como essencial, indispensável, sobretudo num país que é pobre e tem muitas desigualdades sociais. Portanto, o desígnio é olhar o Portugal de amanhã, pensar nos nossos filhos, nos nossos netos, naquilo que é o legado que a política deve deixar nas políticas sociais e aproveitar (como afirma a professora Helena) o que de bom temos.

Temos um Estado que é capaz, através de financiamento, de promover a equidade e a universalidade; temos um sistema misto, de base pública, em que o SNS é o eixo e a força motriz desse mesmo sistema; e temos um fortíssimo desenvolvimento da área privada e social. O segredo estará na capacidade, pensando nas pessoas, de mobilizar os recursos com equilíbrio, neutralidade e com uma relação ética fina para que as pessoas que, em cada momento, precisem de respostas tenham essas respostas.

Há um cinismo político que toca todos os partidos, não falo apenas dos partidos maiores, às vezes até partidos minoritários, que dizem que “não, tem de ser o modelo que nós queremos”, mesmo que isso signifique sacrificar, no curto e no médio prazo, pessoas em concreto. Por exemplo, há um preconceito enorme contra o setor privado e o setor social, há um setor privado contra a gestão empresarial da máquina pública e há uma visão endogâmica burocrática, que é a visão da burocracia do SNS. O que mata o SNS não são os médicos e os enfermeiros que faltam, é a sua burocracia; é os médicos, enfermeiros e outros profissionais estarem reféns de uma carga burocrática administrativa, de uma lógica de concursos absolutamente infernal.

“A extinção das PPP foi um erro”

Se o foco tem de estar sempre no cliente, o Estado poderá ser mais financiador e menos prestador?
ACF – Quanto à questão de o Estado ser financiador, o que a Europa toda mostra, a experiência internacional e a evidência científica (está agora a fazer aniversário sobre o relatório Beveridge, sobre a fundação do SNS inglês), é que – para mutualizarmos o risco e atenuarmos as diferenças entre as pessoas – o Estado tem de ter um papel decisivo no financiamento porque é através dessa via que nós promovemos a gratuitidade no momento da utilização. Não pode haver pagamento no momento da utilização porque aí introduzimos barreiras económicas e discriminação. Quanto a isso, o Estado deve ser o financiador que universaliza e assegura a cobertura geral.

Outra coisa é saber se o Estado deve ser proprietário de todos os meios de prestação. Eu defendo que, sendo proprietário ou não, deve ter uma gestão profissional, seja ela pública ou privada e defendo as PPP (Parcerias Público-Privadas). Acho que foi um erro a sua extinção porque as PPP introduziam aqui um fator de competição pelo resultado, pela melhoria da eficiência. A promoção da saúde, a educação para a saúde, a saúde pública são domínios da esfera pública, são responsabilidades públicas.

Vou dar-lhe um exemplo concreto. Se eu tenho necessidade de fazer uma colonoscopia e o meu serviço hospitalar de proximidade não está em condições de me responder, não tenho de ser penalizado por isso. Eu paguei os meus impostos, paguei à cabeça. Então deve ser o hospital da minha zona que me deve encontrar uma solução. Eventualmente no setor convencionado, certificado, com reconhecida a qualidade, e quem deve pagar esses cuidados é o hospital que gera a barreira de acesso ao serviço público.

É preciso responsabilizar porque todos os portugueses devem ter a possibilidade de ir ao SNS porque o pagamos, o desejamos e o queremos. Mas se, porventura, por razões de estrutura ou de conjuntura ou de dificuldade momentânea os serviços públicos não conseguem responder, eu não tenho enquanto cidadão nenhuma culpa nessa disfunção; então têm de me encontrar respostas. Foi o que aconteceu há tempos, quer com a pandemia quer, mais tarde, com as maternidades. Essa colaboração é muito forte também entre o setor social e o público.

HC – A saúde, a ciência e a medicina estão a evoluir nisso. É difícil para uma máquina pesada acompanhar a inovação, sobretudo, na organização do sistema de saúde e dos serviços prestados. Os doentes daqui a cinco anos são diferentes dos doentes atuais, não só em termos de patologia. Algumas patologias mais recentes, nomeadamente a resistência a antibióticos, as associadas às alterações climáticas e as derivadas do envelhecimento da população; os idosos daqui a 5/10 anos são igualmente diferentes dos que temos agora.

Depois, é preciso enquadrar neste sistema o papel da tecnologia. Como é que os portugueses e as pessoas que vivem em Portugal vão aceder aos serviços de saúde? E aqui (para pegar nas palavras do Prof. Adalberto), temos as questões de desigualdade e de iniquidade que o Estado tem a obrigação de colmatar, de olhar para as diferentes necessidades dos diferentes cidadãos e para as suas capacidades de acesso. Não apenas porque o seu hospital de proximidade não tem, por exemplo, colonoscopia, mas porque aquela pessoa específica pode ter dificuldade em aceder a uma consulta que, se souber mexer no digital, pode até marcar online. O contacto com o médico ao longo do tempo, por exemplo, com os médicos de família, a forma como se chega a um centro de saúde ou a uma urgência ou aos cuidados de saúde primários, tudo isto está a mudar e vai forçosamente mudar com as novas tecnologias. Nós temos de saber desenhar o percurso do doente nos cuidados de saúde. Isto também dificulta muito o tratamento desse doente; não é só a falta de profissionais, é também a falta de a pessoa saber encontrar-se e entrar no sistema.

“A gestão da pandemia foi um desastre”

Prof. Adalberto, é necessário deitar mais dinheiro para cima do sistema? Ou o sistema está suborçamentado?
ACF – Temos, nos anos recentes, uma prova inequívoca que tem sido pouco falada e que começa agora a ser ventilada… Em 2018, quando saí do Governo – o mérito não será meu nem da minha equipa – havia em Portugal pouco mais de 440 mil portugueses sem médico de família, agora estamos com 1,5 ou 1,7 milhões. Em 2018, o orçamento que tínhamos era pouco superior ao da troika e aquele período foi de grande resposta assistencial, uma das maiores do país. Hoje temos um orçamento que se aproxima dos 15 mil milhões, com défices anuais absolutamente inesperados, mil milhões de défice por ano.

O que está aqui em cima da mesa é que nós deixámos resvalar de 9 mil milhões para 15/16 mil milhões, sem ter aumentado os profissionais de saúde, sem ter feito uma reforma estrutural profunda porque a pandemia foi, de facto, um tampão a que qualquer coisa fosse feita. A gestão da pandemia em Portugal não foi um sucesso; foi um desastre do ponto de vista dos resultados epidemiológicos, com uma mortalidade acrescida de mais 24% entre o início e o fim da pandemia, com serviços fechados inapropriadamente, com o acumular de doentes com doença oncológica que se agravou imenso.

Quando digo que a política não se coíbe de sequestrar os cidadãos por causa dos seus caprichos, quando há tanta gente com barreiras no acesso, não há como encontrar uma solução qualquer dentro ou fora do SNS para que essas pessoas, enquanto o SNS não se regenera, tenham respostas? Foi a seguir à pandemia que os seguros de saúde e o setor privado mais explodiram, dada a aflição das pessoas em encontrarem respostas. Muitas com rendimentos médios baixos, para as quais a compra de um seguro de saúde é uma violência.

É preciso, politicamente, que haja um entendimento entre os partidos maiores para que o sistema seja flexível e adaptável. O cidadão e o hospital do futuro serão uma coisa diferente. Daqui por cinco anos, o hospital do futuro praticamente não tem camas ou tem blocos automatizados, robotizados, as pessoas entram de manhã e saem à tarde.

Aqueles que falsamente defendem o SNS fazem-no, quanto a mim, numa ótica de conservadorismo perigoso. Aquilo que o António Arnault criou em 1979, hoje não existe porque a população e o país são outros. Temos de ter uma matriz pública de responsabilidade e de proteção, de diluição e mutualização do risco, mas temos de ser flexíveis e adaptativos.

Não tenho de satisfazer eleitorados, tenho de satisfazer as pessoas (que até nem votam porque metade dos portugueses não vota) que não podem ser sequestradas pelo capricho burocrático de um modelo – não me leve a mal a expressão, e digo-a provocatoriamente, que é um modelo soviético -, hierárquico, burocrático, de alguém que não percebe que a Europa é aberta e global e que a competição dos recursos humanos não vai parar. Ou seja, não vai ser por decreto que vamos impedir que o governo inglês venha cá buscar enfermeiros ou que vamos impedir que o governo belga ou suíço venha cá buscar médicos dentistas ou médicos de medicina geral e familiar.

Acho a ideia anunciada dos médicos cubanos uma ideia errada, não porque tenha nada contra os médicos cubanos, mas porque acho que há plasticidade do sistema para resolver o problema sem estarmos a dar escoamento a um modelo político que escraviza os seus profissionais e que os põe cá a ganhar miseravelmente para nós pagarmos ao Estado cubano. Do ponto de vista dos direitos humanos, isso é intolerável!

Para concluir, se nós despoluirmos a nossa visão e o nosso desígnio do tal Portugal de amanhã, conseguimos ter um país aberto que se adapta às pessoas, que respeita a demografia, que respeita a pobreza – que um pobre possa ter a resposta que precisa em cada momento, que não está sacrificado pela tal burocracia endogâmica. O sistema de saúde português está muito melhor hoje do que o inglês, que é o modelo inspirador. Também está muito melhor do que o espanhol. Será de uma grande irresponsabilidade dizer que não há problemas porque isso é politiquice e propaganda.

Agora, quando comparamos a densidade, a dimensão e o impacto dos problemas que temos com a pátria que nos inspirou, que é o modelo inglês, com Espanha e com Itália, nós estamos muito melhor, mas temos de nos libertar, discutir menos o processo, o detalhe da organização, do enquadramento jurídico e regulamentar e dizer assim: eu tenho ali uma pessoa que tem uma idade concreta, tem uma necessidade de saúde concreta e que tem direitos.

“Os salários são muito baixos no SNS”

Quando continuamos a assistir a médicos e enfermeiros a emigrar e ao governo a contratar médicos em Cuba, o problema de fundo está na gestão de recursos humanos?
HC – Em relação à formação dos profissionais de saúde, tem havido um acréscimo de formação, mas depois o que nós vemos é que não conseguimos reter, nem no SNS nem no país. É preciso olhar para a forma como estamos a reter os profissionais de saúde. Falando dos médicos, o SNS há uns anos oferecia carreiras, não era apenas o salário. Tinham uma carreira que lhes permitia desenvolver investigação no hospital, desenvolver ensino e esse sentido do que é uma carreira médica foi-se perdendo pela pressão assistencial e pelo tempo contado.

Um dos problemas é a forma como medimos o sucesso na prestação dos serviços que fazemos. Se o que conta é só o número de consultas ou o número de cirurgias e não a qualidade dessa prestação, acabamos por só querer números.

É preciso olhar que os salários são muito baixos no SNS em Portugal e, por isso, as pessoas vão para fora do país por uma questão salarial. Mas não é só uma questão salarial. É uma questão de todo o ambiente: como é que o hospital está equipado em termos de tecnologia, de atualização dos profissionais, em que condições estão a prestar os serviços, a satisfação de quem recebe os cuidados que também influencia a motivação dos profissionais…

Outro aspeto que considero muito importante e que, em Portugal, é pouco trabalhado é a função de cada um, a job description. Quando alguém está a prestar um serviço, o que é que se espera dessa pessoa? E a quem está a ser prestado o serviço, quais são as suas expectativas, o que espera?

O que vemos, muitas vezes, é que há uma grande diferença entre as expectativas quer do profissional de saúde quer do doente e o que acontece na realidade. Tudo isso leva à desmotivação e ao desvio das pessoas do sistema.

“Não tem havido organização no SNS”

Prof. Helena, os hospitais privados têm consultas de médico de família online. Essa solução poderia resolver o agravamento das listas de espera que o Prof. Adalberto refere?
HC – Estou plenamente de acordo com o que foi referido pelo Prof. Adalberto. Em relação à sua questão, em Portugal, temos também de olhar para a organização dos cuidados de saúde primários e dos hospitais e pensar que, obviamente, a urgência não pode ser o local mais fácil para um cidadão tomar contacto com o sistema de saúde, pelo que enquanto tivermos urgências abertas não conseguimos melhorar o acesso ao sistema.

Tem-se investido no SNS 24 e, durante o tempo em que o Prof. Adalberto foi ministro, houve um grande desenvolvimento também nessa área. Tudo isto demora, para que as pessoas sintam confiança, saibam que podem telefonar e ser encaminhadas, mas tem de haver um pensamento e uma estruturação que começa por onde é que o doente entra no sistema, qual é a via e depois as vias não podem ser as mesmas para todos os doentes. Neste momento, não tem havido estratificação, organização.

ACF – Nós não podemos cair na tentação de confundir satisfação de necessidades com consumo. No setor da saúde, não estamos numa área de resposta a consumo; estamos num setor de resposta a necessidades e o que falta fazer com a tal visão de médio prazo é alinhar as respostas com as necessidades. E nós temos um desalinhamento. Uma lista de espera o que é? É um desalinhamento entre respostas e necessidades. O milhão e meio que não tem médico de família onde é que vai satisfazer as suas necessidades? Vai ao hospital geral, de porta aberta. Há que trabalhar na aproximação entre respostas e necessidades, contando com o apoio de todos para que isso possa vir a ser realizado.