Reter talento: 10 anos de isenção de IRS para os jovens?

António Leitão Amaro, jurista e ex-deputado, e Paulo Marques, coordenador do Observatório do Emprego Jovem, debatem ideias e medidas urgentes e reconhecem que é um problema estrutural do país.

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António Leitão Amaro: “É preciso medidas excecionais para a fuga de jovens”

Portugal vive um drama, um país que se projeta no futuro e está a perder uma parte muito significativa, não apenas dos seus jovens, mas dos seus jovens qualificados. Não foi um problema de uma crise e já passámos um ciclo de recuperação económica. É um drama para as perspetivas de financiamento do Estado e dos serviços públicos; é um problema de financiamento do sistema de pensões e é um problema de realização enquanto país.
Os pais esperam que os filhos saiam (e isso é um drama) para não voltar; não é um problema de passar algum tempo e voltar. Nós temos de resolver as causas do abandono. Não estamos a falar de saídas temporárias para ganhar experiência profissional e formação que até podem ser vantajosas para os jovens que o fazem temporariamente. O problema é ser uma situação massiva por falta de oportunidade no país.
Temos três grandes razões: uma, rendimentos insuficientes; segunda, com esses rendimentos, não conseguir pagar casa porque as casas estão demasiado caras e inacessíveis; terceiro, a condição no mercado laboral é de exclusão, é um mercado dual, em que os que estão de fora e a entrar enfrentam uma barreira de grande rigidez que protege quem está dentro.
O debate é muito focado no tema dos rendimentos. Nós conseguimos melhorar o rendimento dos jovens, desde que os empregadores paguem mais, mas o Estado pode tirar um bocadinho do que cobra. E o Estado cobra 34% para injetar no sistema de pensões e depois tem um nível de IRS que nos escalões mais elevados chega aos 40 a 45%.
Pertenço a um partido que apresentou uma proposta muito audaz, há um ano, de reduzir, não uma isenção total, mas reduzir em 75%, tirando o último escalão. E é uma opção que está a fazer o seu caminho. O Partido Socialista ,depois de nos ter chamado ou irresponsáveis ou injustos, veio emendar a mão e apresentou uma medida que é inspirada. É mais fraca, porque é só um desconto durante dois ou três anos. E, ao longo desses dez anos, acaba por ser muito mais baixo.
Portanto, o que nós dizemos é: o país tem um problema estrutural que é a fuga de talentos e a fuga de jovens que cá vivem. Nós precisamos de medidas excecionais, mas não de um desconto de dois ou três anos. Precisamos é de um horizonte de juventude,. Por isso, nós dizemos que deve ser até aos 35 anos a intervenção fiscal do Estado que retira rendimento seja muito reduzida.
Com isso, nós conseguimos reter jovens e conseguimos aumentar também a capacidade produtiva . Só depois, reduzir os impostos para todos, em geral.

Paulo Marques: “É necessário ambição e agenda, além dos impostos”

Há uma alteração estrutural da composição das novas gerações comparativamente com as gerações anteriores. Por exemplo, quando nós estudámos no ensino secundário, 40% das pessoas abandonavam a escola. No início de 2000, 10% dos jovens terminavam a formação superior e, neste momento, 45% dos jovens, dos 25 aos 34, terminam o ensino superior, o que é uma mudança avassaladora.
O abandono escolar caiu substancialmente e há uma mudança radical. Foi disruptivo, não foi um processo gradual. Temos uma oferta muito maior de pessoas qualificadas e isso, em primeiro lugar, tira poder negocial; em segundo lugar, houve mudança nas qualificações, mas ela não se verificou ao mesmo ritmo no padrão de especialização da economia… isto conjugado com o facto de termos tido uma crise económica em que o desemprego jovem aumentou muito (crise financeira de 2008 e crise da dívida soberana de 2011) e chegou quase aos 40%.
Houve uma rotura também do salário de entrada no mercado de trabalho porque, além de haver mais qualificados e perderem poder negocial, o desemprego ainda tirou mais poder negocial.
Portanto, conjugamos estas três variáveis e temos um fenómeno de sobrequalificação, conceito que se deve aplicar às pessoas com ensino superior porque não é por alguém ter o nono ano (numa profissão em que a maioria dos mais velhos tem a quarta classe) que é sobrequalificado. No ensino superior, é realmente um problema: pessoas com formação superior a trabalhar em empregos em que a maioria das pessoas tem um nível de formação inferior.
No setor privado, por exemplo, temos dados administrativos (não são amostras) de 5% de jovens sobrequalificados, em 2002, e, em 2021, temos 15,7%, só com ensino superior. O problema é de uma magnitude, de uma dimensão estrutural tal, que leva a uma desvalorização salarial dos jovens. Para resolver isso, são necessários uma ambição e uma agenda estratégica que vai muito além dos impostos.
Se pensarmos que isso, por si só, vai resolver o problema, podemos criar expectativas aos jovens que depois não se concretizam. Se os jovens têm salários de mil euros, até podem pagar menos IRS. Mas isso é suficiente para cumprirem as expectativas de um emprego de acordo com as suas áreas de formação?
Teríamos de mudar a economia a nível estrutural e isso é muito difícil, como provam vários exemplos de outros países.

Paulo Marques: “Saíram 50 mil pessoas a pandemia. Hoje, estamos nas 70 a 75 mil saídas por ano”

Nos últimos anos, assistimos a uma saída brutal de jovens qualificados. A isenção de IRS nos 10 anos a seguir à licenciatura pode travar essa fuga?Paulo Marques – No pico da crise, conjugámos o desemprego com estes fatores estruturais e chegámos a ter níveis de saída de 120 mil pessoas por ano; foi o pico, nos dados sobre as saídas.
Os números baixaram um pouco com a pandemia, é normal. Aliás, é incrível como é que saíram 50 mil pessoas naqueles contextos de encerramento, mas aponta-se para que, neste momento, estaremos nas 70 mil a 75 mil saídas por ano, segundo os dados que são divulgados pelo Observatório da Emigração.
Em primeiro lugar, é preciso situar. Se tivéssemos um aumento muito rápido do desemprego, eventualmente teríamos uma saída ainda maior, porque tínhamos a conjugação dos fatores conjunturais com os fatores estruturais. Acho também importante referirmos isso. Quanto à questão dos impostos, havendo margem orçamental e tendo de focar em algum grupo, é óbvio que aquele que está numa situação de maior fragilidade deve ser mais apoiado; não tenho dúvidas disso.
Agora, criarmos a expectativa de que isso vai resolver os problemas estruturais, não vai resolver. Pode haver uma contribuição, mas não é uma situação em que vamos ter uma alteração do ponto de vista estrutural. Temos, neste momento, uma dependência grande do setor de tudo o que é ligado ao turismo.
Só no emprego, foram criados 100 mil postos de trabalho, em 2022, na área do alojamento e restauração. É absolutamente brutal, já quando tinha havido a recuperação do emprego no país.
Nós temos a contribuição para o PIB a crescer e cada vez com uma contribuição maior. Faz sentido, por exemplo, utilizando fundos comunitários, apoiar mais hotéis, mais crescimento do setor de turismo, quando sabemos que esse tipo de setor não cria emprego de qualidade? Já temos o suficiente, já dá uma contribuição, já faz com que o desemprego seja mais baixo.
Também precisamos de pessoas a contribuir para a Segurança Social e é óbvio que é melhor ter um emprego do que não ter. Mas, atenção, também temos de perceber que é preciso ter uma agenda estratégica. Isso é absolutamente central porque essas mudanças profundas implicam, por exemplo, apoiar empresas de maior dimensão, criar condições para ligar as universidades — e apoiar as universidades com maior capacidade inovadora — a essas empresas, colocar os doutorados ou os doutorandos também no setor privado, já para não falar das outras áreas, habitação e tudo isso.
Mas isso é estrutural, são mudanças estruturais e, como é óbvio, não se vai resolver com um estalar de dedos. É importante dizer isso também aos jovens.

– Temos a casa a arder com jovens qualificados que estão a sair, numa conjuntura diferente daquela que o Paulo acabou de referir. Face esta situação grave, deve haver medidas excecionais?
António Leitão Amaro – Deve, mas não podem ser logros, nem enganadores em termos de expectativas.
É por causa disso que eu estou profundamente crítico com aquele anúncio que o primeiro-ministro, António Costa, decidiu fazer em agosto, em que misturou uma medida que é mais estrutural, que é uma versão só com aqueles 4/5 anos (que é curta), mas depois misturou-lhe dias em pousadas de juventude, cheques-livro e isso acho que é um caminho errado.

António Leitão Amaro: “A progressividade do IRS é muito agressiva para jovens”

Não é por causa de um voucher numa pousada de juventude que alguém vai ficar em Portugal, certo?
ALA — Seguramente. Mesmo a medida dos passes de transportes gratuitos, que, aliás, é uma réplica de uma medida de autarcas do PSD, de Lisboa e Cascais, também não é suficiente.
Sobre a emigração, além de o valor ainda ser muito alto (70, 80 mil), há uma percentagem cada vez maior dos que emigram que são qualificados, ou seja, temos muitos a sair, mas são cada vez mais os qualificados.
Agora, nós temos aqui três abordagens. Há os que ignoram, hipótese um, e esse problema não pode mais ser ignorado; hipótese dois, é quem trata isto com estas opções e estes engodos ou pequenos brindes que não mudam nada de estrutural; e depois temos a versão de quem percebe que há uma dimensão estrutural e diz que não vamos fazer nada de conjuntural porque temos de ficar à espera das medidas estruturais.
O problema de o salário de entrada ser baixo é dramático. A estrutura do IRS já tira alguma coisa quando os jovens entram. Quando começam a pensar, após a licenciatura, que, daqui a 4 ou 5 anos, as minhas qualificações iam-me fazer ganhar mais, casar, ter filhos… isso é altamente castigado pela opção do IRS.
Não é por ele ser progressivo, que eu concordo, mas é uma progressividade muito agressiva. Os jovens olham para a perspetiva de crescerem aqui e pensam para que é que vão aplicar as qualificações. Na sobrequalificação, este prémio negativo ao progresso, ao crescimento, à maior produção, é terrível.

Paulo Marques: “Os jovens importam-se com conciliar trabalho e família e emigram para os países escandinavos”

Há concorrência de jovens quadros estrangeiros que vêm trabalhar para cá, pelas multinacionais, mas têm a vantagem dos salários…
ALA — A grande diferença é que eles estão com salários dos países de orige… Se baixarmos o IRS, retira-se a penalização fiscal, mas ela é muito grande. Como não queremos eliminar as contribuições para a Segurança Social, porque já temos uma situação dramática na sustentabilidade no longo prazo (também para estes jovens), é no IRS que temos de trabalhar e com muita agressividade, mas precisamos de uma resposta estrutural. Eu acredito num país onde se vai pagar, no futuro, muito menos IRS.
Devemos retirar tributação sobre o trabalho, só que para o conjunto da população demora mais tempo porque nós precisamos de fazer a otimização da despesa do Estado, cortar benefícios fiscais, recompor o sistema fiscal. Portanto, temos de escolher uma prioridade que é estancar essa saída de jovens e dar este sinal nas remunerações.

— Não parece haver incentivos aos jovens para ficarem cá e constituírem família. Logo, há uma questão de demografia. É analisada no Observatório de Emprego Jovem?
PM — Houve uma iniciativa, que até foi patrocinada pelo Presidente da República e que o Observatório de Emprego Jovem esteve envolvido, em que houve uma auscultação aos jovens, às organizações de juventude e às grandes empresas que assinaram um pacto para a promoção do emprego jovem. Uma das questões que os preocupava era se se media o trabalho deles pelo número de horas que estavam no trabalho. Sentem que há, nas empresas, a cultura de que o último que sai e fecha a porta é o verdadeiro trabalhador.
E isso são questões que importam aos jovens como a conciliação do trabalho com a vida familiar. Se formos ver os países que têm conseguido ter políticas de conciliação mais fortes, que são os países escandinavos, o Estado social dá apoios de creches gratuitas, políticas ativas de emprego, formação ao longo da vida, etc.Os destinos da emigração jovem qualificada são os países escandinavos, nos últimos anos. E isso remete-me para outra questão. Temos um cenário de querer manter os jovens, num contexto de um Estado social mais generoso e com este tipo de preocupações, mas tem de ter serviços públicos de qualidade. Portanto, não vale a pena ter impostos altos e depois ter serviços públicos que não funcionam. A outra possibilidade é termos um quadro de flexibilização maior e uma liberalização maior da economia. Há paísesque conseguem ter níveis de crescimento do PIB elevados. Não há aqui uma via única para manter os jovens, ter boas condições de trabalho, ter salários mais altos, etc.
Agora, há um dilema. Quem tem uma agenda de um Estado social mais abrangente (com maior generosidade, mas com eficiência económica) tem o desafio de ter serviços públicos de qualidade; senão isso vai esboroar-se. Não vale a pena estar e depois não tem.
Os outros têm o desafio de conseguir falar para a imensa maioria, com rendimentos mais baixos, e também há jovens menos qualificados e esses jovens também emigram e estão a beneficiar do salário mínimo ( que aumentou 60 e tal por cento nos últimos anos); é preciso falar também para essas pessoas.
Esse é um desafio. Depois cada um tem as suas próprias convicções e acha que é melhor viver num país com determinado modelo ou viver num país com outro modelo.

António L. Amaro: “Os jovens precisam de uma creche, é indiferente quem a gere”

No tema da demografia, tal como na retenção de talento jovem, não seria normal haver medidas diferentes?
ALA — Sim, creches gratuitas e todo o ensino pré-escolar até entrar no primeiro ciclo. Nós fizemos uma proposta de revisão constitucional que garantia a universalidade e a gratuidade do acesso às creches e ao pré-escolar.
Precisamos de um Estado mais pequeno para viabilizar as condições de realização dos jovens. A redução de IRS, incluindo o jovem, que é preciso e possível fazer (e o acesso à habitação), faz-se com a subsidiação de renda nos primeiros anos e o Estado viabilizar a compra de casa, eliminando o IMT para os jovens e dando uma garantia para que possam ir ao banco buscar 100% do empréstimo. Hoje não conseguem, por regras europeias de salvaguarda da estabilidade dos bancos, mas o que o Estado português deve fazer é dar uma garantia sobre a parte do empréstimo que os bancos hoje não financiam.
Baixar o IRS para aumentar o salário líquido; programa de apoio à compra da primeira casa; subsídio de renda para os jovens (não aquele Porta 65 Jovem, que são 30 milhões por ano; e flexibilização do mercado de trabalho com uma espécie de contrato único para que as condições dos jovens sejam mais próximas dos que já estão dentro do mercado. Complementaria com uma espécie de IRS negativo, em que, quando passam da situação do desemprego para o emprego, não sejam penalizados com apoios sociais e há uma quebra da progressividade.
É um quadrado: rendimentos, habitação, regime laboral e estímulo à parentalidade. Na licença parental, não estamos mal. Estamos mal é nos apoios; deve ser o apoio em espécie e menos o financeiro. Talvez o mais bem-sucedido é o francês que apostou quase as fichas todas na creche gratuita. Não existirem vagas e a ideia de só se a creche for da propriedade do Estado é que o Estado financiador financia a provisão do bem, isso é um disparate. Os jovens precisam é de uma creche. Se é gerida pela junta de freguesia, por uma IPSS,por uma entidade privada ou pelo Estado, isso é indiferente.
Este conjunto de medidas tem uma expressão financeira compatível com uma recomposição da taxação e da tributação, com mais eficiência na gestão de alguns serviços públicos. Isto é pagável, com o cenário que temos hoje ou com o efeito das chamadas políticas variadas ou variantes. Assim, os jovens têm um incentivo a ficar, a produzir, a qualificar-se e a gerar ainda mais riqueza e mais impostos que pagam estas medidas.