Debate: Voto eletrónico é solução para menor abstenção?

Um frente a frente entre José Tribolet, professor emérito e catedrático do Instituto Superior Técnico, e Miguel Poiares Maduro, dean na Católica Global School of Law.

O voto eletrónico é viável e seguro para combater a abstenção? Sim ou não?
Em debate, José Tribolet, professor emérito e catedrático do Instituto Superior Técnico, e Miguel Poiares Maduro, professor universitário, dean na Católica Global School of Law e ex-ministro do Governo de Passos Coelho.

José Tribolet: “O voto eletrónico será uma prática natural e inevitável”

O voto eletrónico vai ser uma prática absolutamente normal na sociedade humana em geral, progressivamente, ultrapassados que sejam um conjunto de problemas e dificuldades que ainda existem, que assegurem atributos de segurança, de fiabilidade, que são indispensáveis nestes atos.
O facto é que, na sociedade de hoje, cada vez mais o ser humano vive num mundo que é simultaneamente físico e virtual. Em atos normais do nosso dia a dia, toda a sociedade — e não é só a parte mais afluente da sociedade, diria que hoje até nas zonas mais distantes, mais rurais, nas zonas onde há população mais isolada —, a vida das pessoas suporta-se cada vez mais em atos que são realizados no espaço virtual.
Portanto, é perfeitamente natural e inevitável que essa vivência no espaço virtual, em simultâneo com a vivência física, se conjugue também no fundamental, como são os atos eleitorais. Acho que é inevitável.
A única questão realmente a aprofundar é esta questão crítica da votação eletrónica e a democracia e, obviamente, o aperfeiçoamento dos mecanismos para que haja uma segurança elevada e uma autenticidade grande do resultado destes atos eleitorais.
Acho que é na conjugação da tecnologia existente que nós devemos, com bom senso, ir combinar soluções, mas há uma coisa que devemos fazer: é passarmos à prática. Porque o grande problema que hoje temos, não são as fraudes, é a abstenção.
Esse é que é o problema dramático que a nossa democracia tem de resolver. Mas, obviamente, isto não é um milagre. A votação à distância não é um milagre.
Há muitas camadas que estão muito mais a fim de votar com estes meios, e, se calhar, com estes meios está-se a um passo de poder abordar a questão da votação obrigatória ou não. Porque, se nós continuamos a perder votação e ter esta abstenção crescente, daqui a pouco temos um problema muito sério.

Miguel Poiares Maduro: “Não há segurança suficiente para existir voto online”

Em primeiro lugar, temos de distinguir entre duas formas de voto eletrónico. O voto eletrónico presencial, e que pode ter o chamado paper trail, ou seja, uma confirmação de voto em papel, que dá uma segurança acrescida. Quanto a isso, acho que ele é viável e é viável já. Quanto ao voto eletrónico remoto, online, não acho que estejam ainda reunidas as condições para o termos sem mudar o paradigma em que assenta a confiança nos processos eleitorais dos cidadãos. Por três razões.
A primeira é a questão da própria segurança tecnológica. Em alguns países, como é o caso da Estónia, fizeram projetos-piloto em que detectaram que existem fragilidades no sistema. Ou seja, os sistemas não são 100% seguros, em termos de intrusão, quando ele ocorre remotamente. É diferente do presencial, em que são, no fundo, computadores que não estão ligados em rede, e, portanto, os riscos de intrusão são muito menores do que num sistema de voto online.
As agências de investigação dos EUA também fizeram estudos e detectaram que não existia, para o voto online, ainda segurança suficiente para avançar nessa direção.
As outras duas razões têm que ver com a relação com a democracia. O voto democrático assenta em certos pressupostos de confiança a que os cidadãos estão associados, que é, mal ou bem, a ideia de que eles confiam em quem vai escrutinar o voto, que são representantes das diferentes listas, que estão lá, a ver no papel e a confiar nesse papel.
Quando passarmos para um sistema de voto online, sem a possibilidade de verificação em papel, é um salto de confiança enorme, porque deixamos de confiar nos nossos representantes das diferentes listas, das diferentes candidaturas, que estão a escrutinar os boletins e papéis, para passar a confiar numa entidade terceira, que é quem vai auditar, fiscalizar.
E, sobretudo, em sociedades cada vez mais polarizadas, e sem conseguir criar entidades em que todos tenham essa confiança, mudar este paradigma de confiança, em que as pessoas sabem que quem controla os votos são os seus representantes, para quem controla os votos é uma entidade terceira, é uma Comissão Nacional de Eleições, criada pelo Estado. Não é irrelevante e cria muitos riscos.
O terceiro risco associado ao voto online, para além dessa alteração de paradigma de confiança, para além da questão da segurança do sistema, é a questão da confidencialidade do voto.

José Tribolet: “A tendência futura é que vamos todos votar eletronicamente ou ter essa possibilidade”

Miguel Poiares Maduro – O voto presencial, em versão eletrónica, ou em versão em papel, é um voto em que a pessoa vai sozinha a uma cabine de voto e vota. Num voto online, ainda que com mecanismos de segurança, com códigos de segurança enviados para telemóveis, há um risco muito grande de perda da confidencialidade. Porquê? Há o risco do chamado caciquismo. Nós já falámos daquele caciquismo de levar as pessoas a votar, por exemplo. Mas, em última análise, as pessoas depois votam sozinhas e votam o que quiserem. Nós podemos ter pessoas que compram, por exemplo, as passwords e número de utilizadores de voto de alguém, que pagam aos trabalhadores numa empresa ou a pessoas que estão em lares ou que estão em situação até de demência e vão votar por elas. E, portanto, esses riscos aumentam de forma significativa, da pressão, da apropriação do voto, no sistema de voto online.
No futuro, podemos encontrar soluções para isso, mas hoje não estão reunidas as condições para o salto de confiança que é necessário num sistema online e, por isso, é que me oponho ao sistema online nas circunstâncias atuais. Não ao eletrónico presencial, com confirmação em papel.

– Já fazemos pagamentos pelo banco e pagamentos eletrónicos de impostos ao Estado. Há ou não segurança, do ponto de vista da capacidade eletrónica e da fiabilidade do sistema, para votar desta forma?
José Tribolet — Não há segurança 100% em nada. O que há é formas de minimizar o risco e ter mecanismos de verificação múltiplos, que diminuam a probabilidade de haver esses eventos graves.
Na minha experiência pessoal, por exemplo, não só dirigi já votações eletrónicas no Instituto Superior Técnico, que correram bem,como participei nas da Ordem dos Engenheiros, que correram bem, e auditei, em particular, duas eleições para bastonários na Ordem dos Advogados em Portugal. E a Ordem dos Advogados não é propriamente um organismo que esteja no forefront das aventuras tecnológicas. Foi com um software de uma empresa internacional, que tem feito muita coisa na Europa, e nós auditámos; como organismo externo participámos em todo o desenho do sistema e pusemos condições a priori de conhecer, por exemplo, componentes do sistema que são confidenciais, porque aquilo é software privado. Houve um conjunto de incidentes durante a votação, que não afetaram em nada o essencial da verdade da votação. A separação entre quem votou e o seu voto foi absolutamente garantida e, inclusivamente, fizemos um conjunto de testes em tempo real, para assegurar que os votos que eram feitos estavam lá, etc. Pelo menos a uma escala pequena esse voto eletrónico à distância funcionou.
Concordo com os riscos que há, sobretudo em operações de larga escala, e com o conjunto de possibilidades de abusos. O que muda é que, quando é por votação eletrónica à distância, a escala do impacto de um abuso desses pode ser uma coisa massiva. Também é verdade que a capacidade de detectar problemas numa votação a essa escala é enorme. Mas, na minha opinião, o bom senso deve imperar. A tendência é que vamos todos votar eletronicamente no futuro ou ter essa possibilidade.
A votação presencial, como se faz no Brasil, tem prós e contras. Temos de ter milhares de máquinas, com software absolutamente garantido de que ninguém alterou e há maneiras de fazer isso, com assinaturas, etc. É uma virtualização do que se passa fisicamente em papel. É uma opção interessante e que devíamos experimentar, mas também não vejo por que razão, em paralelo, não fazer a impressão em papel e, ao mesmo tempo, estar a fazer a votação eletrónica à distância. Podemos estar a testar massivamente sistemas de votação eletrónica à distância, que não são a fonte de verdade, mas são um repositório que ajuda a validar as votações locais e a ganhar a tal confiança progressiva no sistema e na organização que temos de ter.

MPM: “É um risco descobrir uma fraude que levou a eleição do PR”

MPM — Concordo que podemos fazer testes progressivos e que depende muito da escala.
Dizem que vamos ter tecnologias e que o blockchain irá trazer ainda mais segurança ao sistema. É possível que nessa altura estejamos em mais condições de avançar. Não resolvemos o problema da confidencialidade do voto, mas resolvemos o problema da segurança. É diferente sabermos que há fraudes que exploram as fragilidades que ainda existem no sistema, nos bancos, mas que são fraudes ocasionais da conta de uma pessoa ou de outra e, de repente, descobrirmos que há uma fraude no processo eleitoral que levou à eleição do Presidente da República, de um Governo ou da Assembleia da República.
O facto de o risco existir num lado e no outro não quer dizer que o impacto desse risco seja idêntico. O risco de poder haver uma interferência com um processo eleitoral que determina a escolha de um Parlamento e de um Governo é muito superior ao risco de poder haver uma interferência que determina que há fraude numa conta bancária de duas ou três pessoas. Os bancos têm de desencadear o sistema de seguro.
Numa escala mais pequena e com determinado tipo de eleitorado, como por exemplo os advogados, até a questão da confidencialidade é menos relevante. Os advogados estarão muito menos sujeitos a ser pressionados, ao risco de aproveitamento e de transação de voto. É uma comunidade onde pode fazer sentido testar e começar a desenvolver sistemas de processo mesmo de voto online. Agora é diferente passar para uma comunidade muito maior.

Miguel P. Maduro: “Podíamos avançar com o voto eletrónico presencial, também com o papel, como no Brasil”

— Vamos ter, pelo menos, duas eleições este ano: as legislativas em março e as europeias em junho. Quando é que poderia ser admissível, tendo em conta a argumentação de ambos, haver a implementação de voto eletrónico em Portugal?
MPM — Pelo menos voto eletrónico presencial, com o papel também, que permita o voto à distância, acho que podíamos avançar relativamente rápido.
O voto online não avançaria já. Fala-se disso para os círculos da emigração e acho que é muito perigoso. Já é perigoso com as cartas por correspondência, aliás, tivemos umas eleições anuladas recentemente.
Há imensos cidadãos portugueses que, em princípio, têm direito a votar, mas nem sabem. Outros podem obter as suas certificaçõe e isso comportar um risco muito grande de compra, de influência das eleições. No online, não acho que estejamos em condições de avançar, muito menos numa escala destas.

JT — O voto presencial, isto é, em que há uma máquina local que está a recolher votos daquela circunscrição, independentemente se as pessoas estão ali ou estão distantes, tem as suas vantagens e os seus inconvenientes. Estas máquinas têm de estar acessíveis à distância e isso põe problemas. Viu-se isso nos problemas nas votações nos EUA…

MPM —No caso do Brasil, por exemplo, os resultados são apurados na máquina e depois são transportados em papel até ao centro, para evitar essa ligação à distância.

JT — Sim, são apurados na máquina e as ligações são redes privadas, portanto, não em redes públicas. O caso do Brasil é um caso que há muitos anos está a funcionar e de um modo geral razoavelmente bem.

MPM — O escrutínio do sistema não está nas mãos de uma entidade governativa assistida, está nas do Supremo. Outra garantia importante.

José Tribolet: “O voto eletrónico permite votar independentemente do dia e do sítio”

JT — O modelo do Brasil é interessante e demonstra que o voto presencial eletrónico é perfeitamente viável. Há estudos de universidades brasileiras e outros institutos que mostram até as condições de segurança que eles usam no software. Um software aberto é um software que é conhecido, não é um segredo. As pessoas podem verificar se há problemas e tem bastantes qualidades. O voto hoje, à distância, pela internet, se associado a outros mecanismos como o blockchain, vai dar níveis de segurança que potencialmente são superiores à votação local. Na votação local, se houver alguma perturbação na votação, não escala, é local. Isso é indiscutível.
O grande mérito de também podermos ter essa dimensão da votação à distância pela internet é a possibilidade de dissociarmos o ato eleitoral de um determinado dia e de um determinado sítio. Vão votando à distância. Isso vai ser um dos fatores mais importantes para aumentar a participação eleitoral, que eu acho que é o grande problema que temos pela frente.
É uma desgraça a abstenção que temos. Não estamos a conseguir extrair a vontade do povo.

MPM — Isso pode ser feito com o eletrónico presencial. Está lá durante uma semana, duas semanas, as pessoas vão lá votar. Não votam no telemóvel em casa, mas têm duas semanas para ir votar em vários locais.

JT — Concordo com o que me está a dizer. Aí não precisa de ter as máquinas no sítio. Precisa de ter uma máquina num sítio e ter uma ligação dedicada. Uma ligação que não esteja na rede pública. E então vai a um quartel e a máquina está algures, por exemplo, no Porto.
De um modo geral, o que estamos a dizer, no fundo, é que isto vai terminar numa coisa gira: ou uma configuração, uma rede de máquinas locais, e que estão a agregar locais e tomam decisões locais, são escrutinadas por comités locais, é um modelo descentralizado. Ou é um modelo totalmente centralizado.
Não vejo nenhuma necessidade de ter um modelo totalmente centralizado. As máquinas estão na cloud, estão onde quiserem. A questão é que quem é dono e controla uma determinada máquina e uma determinada urna eletrónica não seja só uma entidade central.

Miguel Poiares Maduro: “O voto eletrónico não aumentou significativamente a participação”

Referiu há pouco a questão de qualquer dia termos o caminho para um voto obrigatório. Isso acontece no Brasil, mesmo com o voto presencial. Esta poderá ser uma solução a adotar em Portugal, até para combater a abstenção?
JT — Acho lamentável se tivermos de caminhar para aí. Mas a questão é a seguinte: não podemos aceitar que apenas 20% dos cidadãos é que votem. Isso não é democracia.
É claro que a culpa não é da democracia, mas se as pessoas estão de tal maneira afastadas do ato importante de votar, nós temos de ir até elas e facilitar ao máximo o contexto onde a pessoa vota. Diria que, no limite, a pessoa está ali para ver a Netflix e de repente aparece no ecrã “faça favor de votar”. Assim como vê anúncios e outras coisas.
O que é importante é que as pessoas exprimam a sua opinião e não podemos desistir disso. Este ambiente virtual tem características mais apelativas para o voto do que o ambiente físico atual.

— Em teoria faria sentido, no limite, essa obrigatoriedade do voto?
MPM — É uma das questões mais discutidas nas teorias da democracia. Confesso que tenho uma ambiguidade. Não tenho uma posição certa relativamente a isso.
Já agora, um primeiro ponto. Onde se fizeram testes com voto, mesmo online, à distância, houve um ligeiro aumento da participação, mas, curiosamente, não houve um aumento muito significativo da participação. Não se revelou um enorme mecanismo de combate à abstenção, o que diz que é um problema mais profundo que nós temos na sociedade. Não é apenas uma facilitação do voto, é um problema profundo.

José Tribolet: “Temos de facilitar ao máximo o contexto de voto”

MPM – Por um lado, acho que o voto é mesmo um dever cívico e deve ser compreendido como isso pelos cidadãos. E isso vai no sentido da obrigatoriedade do voto. Por outro lado, há teorias de participação política e de democracia que dizem que quem não tem interesse em votar, no fundo, também deve ser penalizado em termos do seu peso nas participações políticas. Ou seja, o voto não é apenas uma preferência, mas também um reflexo da intensidade com que alguém quer participar na vida cívica. Quem quer participar, vota, e, portanto, tem peso através do seu voto. Quem não quer participar, não participa e perde influência na sociedade. É esta ambiguidade entre o dever cívico e o reconhecimento que esta questão da intensidade da preferência política também deve ser reconhecida no processo eleitoral, que me leva a não ter uma posição clara nessa matéria.