Nariz de Enólogo. Carlos Lucas: o homem que mudou o Dão

O “enólogo do Dão” explica o projeto que iniciou em nome próprio, como o estilo de vida influencia o gosto e a necessidade de reformular políticas para o setor . Pelo meio, deixa 10 sugestões de vinhos

Com mais de 30 anos de experiência, Carlos Lucas é um nome inolvidável da enologia portuguesa contemporânea. Passou por França, Itália, Espanha e Brasil e teve um percurso marcante na Adega Cooperativa de Nelas e na Dão Sul (atual Global Wines). Conversámos com o homem que arrancou para um projeto próprio e, no caminho, transformou a região.

Em 2011 criou a Magnum-Carlos Lucas Vinhos. O que é este projeto?
Carlos Lucas – A Magnum assenta no meu nome. Faço este ano a 32ª vindima e assenta na personalidade do Carlos Lucas. Desde que cheguei ao Dão, todos os anos faço vinhos com alguma inovação. Tentei fazer coisas novas: fiz espumante, fiz colheitas tardias, fiz muitos brancos – quando a região fazia só vinhos tintos –, trabalhei a casta Encruzado de mil e uma maneiras. Portanto, o elemento distintivo da empresa é precisamente criar coisas novas.

A Quinta do Ribeiro Santo foi comprada pelo meu pai em 1995 para oferecer à minha filha. A empresa foca-se exatamente em algo que é a criar sempre novidade em relação ao que os outros produtores fazem. E criou moda no Dão. A partir daí, desde a plantação das vinhas até à feitura da adega, foi sempre a crescer e a fazer coisas novas.

E crescer também para além do Dão?
CL – Exatamente. Temos no Douro, temos no Alentejo e temos vinhos verdes. Somos uma empresa essencialmente exportadora dos Vinhos de Portugal, acima de tudo concentrados no Dão e no Douro. No Douro temos neste momento a Quinta das Herédias, em Tabuaço, uma propriedade lindíssima que possui uma das mais antigas vinhas na região. Os monges da Ordem de Cister edificaram ali o Mosteiro de São Pedro das Águias, portanto é uma região mítica, onde tudo nasceu, na transição de xisto e granito, com lagares antiquíssimos e um manancial de vinha com pedigrees antiquíssimos. Fazemos coisas muito diferentes, é verdade.

Qual é o volume de negócios e para onde mais exportam?
CL – Cerca de 5 milhões de euros, e exportamos cerca de 75% da produção. Atualmente, os principais mercados são a Inglaterra, a Finlândia, Canadá, EUA e Brasil.

Tem algum projeto novo em que esteja a trabalhar?
CL – Quando cheguei ao Dão, em 1991, 90% da armazenagem do vinho era feita em depósitos de cimento de grandes dimensões, que tinham desde 16 a 500 mil litros. Em 1995-96 apareceram as barricas e, por volta da mesma altura, o inox.  Mas se recuarmos aos anos 40, 50, todo o nosso vinho era armazenado durante cinco a sete anos em depósitos de cimento de grandes dimensões, onde a largura do próprio cimento era de tal forma.

Esse estilo de vinho perdeu-se com a entrada do inox e da barrica e eu quero recuperar atualmente. Por isso adquiri essa vontade de fazer novos vinhos, mas esse classicismo e mantê-los durante um, dois, três anos nesses depósitos, que vai certamente fazer lembrar o que era o Dão no passado

Vê novos players a entrar no mercado internacional?
CL – Não, são os mesmos que mantêm o mercado. Espanha, Itália, França… lá fora os EUA, a Austrália, a Argentina e o Chile. Não estou a ver novos players.

Nota mudanças no perfil de consumo?
CL – Sim, nota-se cada vez mais a procura por produtos mais leves em termos de álcool e a introdução de novos modelos de consumo de vinho, que não aquele com o copo de vidro fino e pé alto, apenas no restaurante.

Aparecem perfis de vinho que tentam introduzi-lo na noite, como se vê em Espanha com o tinto de verano, com vinhos acompanhados com gelo e copos mais largos e até vinho em lata ou em garrafa de 180ml. Está a haver uma evolução muito grande no setor do vinho de consumo. Há aposta em espumante cada vez mais: eu próprio a estou a fazer também. Há uma tentativa de fazer cada vez mais vinhos que as pessoas consigam consumir de imediato.

A que se deve esta mudança?
CL – Não me parece que seja cansaço dos perfis habituais. É uma evolução global e transversal: temos um consumo mais rápido, mais atual, mais imediato. Sejam as saladas prontas, comida pré-cozinhada… repare, mesmo os automóveis tentam facilitar a nossa vida. Estamos a atualizar a nossa forma de vida – e o vinho não foge à regra.

Repare, o  vinho e o pão são os únicos alimentos que atravessam milhões de anos. E adaptou-se sempre ao consumo. À entrada de outras coisas no mercado, quer dizer, quando entrou o whisky, quando entrou a vodka, quando entrou o consumo dos drinks, o vinho foi se adaptando, não é?

A adaptação é o que acho importante. O produtor não tem medo de produzir vinho; a maneira como fazemos chegar ao consumidor é que é diferente.

Qual é o papel da tecnologia na produção?
CL – Isso mais uma vez tem que ver com o estilo de vida da atualidade. Este requer que as pessoas pensem – não é que atuem, mas pensem – que fazem algo para contribuir  para que a agricultura lhes traga produtos biológicos, biodinâmicos, enfim, “naturais”. Mas na verdade deixaram de ser naturais. Uma pessoa para chegar à vinha já não vai a pé, como a minha avó ou bisavó; vai de carro.

Há poucos anos visitei um château francês, com a maior vinha biodinâmica da Europa, que vende vinhos caríssimos. O administrador, ao fim de 4 horas a explicar-me sobre biodinamismo, convidou-me para almoçar. Eis que vamos num BMW X5V 8, que gasta 25l aos 100. Eu perguntei-lhe: “Então andaste a manhã toda a falar de biodinâmica e naturalidade?…” e ele respondeu-me que morava em Paris, pelo que precisava de conforto para fazer os 300km para Bordéus. Se quer saber, este é um pormenor que eu acho importante conservar, mas as pessoas não praticam.

Os vinhos naturais já existiam no tempo da minha avó e do meu avô: ele apanhava as uvas, esmagava-as, experimentava-as, punha-as na barriga. Mas, ao final, não era biológico. Já nessa altura ele acrescentava metabissulfito de potássio.

O vinho natural é um produto que se conserva pouco tempo, não é como o concebemos agora, que se aguenta 20, 30, 40 anos. O leite também precisa de ser pasteurizado para o podermos guardar; mas porque é que se preocupam com o vinho natural e não com o leite natural? Ninguém bebe um leite natural!

O vinho é todo natural. Vinho e vinhas naturais não existem! O vinho é fermentado naturalmente, não é um produto industrial. Para mim, só este tema dava várias páginas de jornal.

O que seria preciso mudar ao nível de políticas públicas?
CL – A política para apoiar o setor passa por pensarmos se queremos o nosso interior desertificado. O setor agrícola não pode ser comparado ao setor industrial. O setor industrial pega em algo e transforma-o; nós temos que produzir. E produzimos fora das cidades, onde se concentra a mão-de-obra. Não temos mão-de-obra nem imigrante – essa está nas cidades, não se concentra no campo. É muito, muito triste percebermos como o nosso interior está desertificado

É preciso uma política fiscal completamente diferente. Um terreno para vinha, que demora anos até começar a produzir, paga o mesmo IMT que um prédio que vai ser rentabilizado de imediato. O mesmo para o IRC. Uma empresa agrícola tem custos acrescentados para produzir no interior, que necessita de pagar para sair e regressar a casa – portagens, gasóleo, etc. -, face a empresas transformadoras no litoral. Um exemplo mais ‘pequeno’. Uma pequena empresa no Douro, que atendendo à sua morfologia precisa de uma pickup, paga um imposto semelhante a quem compra a mesma carrinha na cidade, como se fosse um veículo de luxo.

A carga fiscal desajustada a esta produção compromete muitas vezes os investimentos agrícolas. E ninguém se lembra que quem investe e produz no interior está a cuidar para que não haja incêndios e a criar turismo diferenciado.

Em última instância, é sobre quem manda. Tem que haver responsáveis que conheçam bem o setor. Independentemente do Governo e do ministro: para o setor da Agricultura tem que ser convidado alguém que tenha atenção àquilo que o setor precisa. Não me refiro apenas ao vinho mas ao cereal, à pecuária, à floresta; que saiba olhar na transversal para todo o setor.

Como é que se distingue um bom vinho de um mau vinho?
CL – É difícil de explicar… tanta coisa!, tem mil variáveis. Mas podemos partir deste pressuposto: não há mau vinho. O setor tem uma regulação que controla a qualidade e assegura que o mau vinho, com defeito técnico, não existe em Portugal. O que há é vinhos melhores, com mais cuidado e atenção: isto expressa-se pelo valor de venda.

Para alguém que quer experimentar vinho, o preço é um bom indicador. Mas experimente – é preciso ler, abrir garrafas, provar. Depois, ou gosta ou não. O melhor vinho é aquele que cada um de nós gosta, aquele que nos sabe bem, não o que os outros dizem que é bom. Tem é de experimentar vários!

As minhas escolhas

Portugal

  • Palácio da Brejoeira
    Monção
  • Ribeiro Santo Envelope Branco
    Dão
    Quinta das Bágeiras Avô Fausto
    Bairrada
  • Vértice Pinot Noir
    Espumante, Douro
  • Tinta Negra 50 anos
    Madeira

Internacional

  • Bollinger RD 2006
    Champanhe
  • M. Anto. De la Riva Manzanilha Branco
    Espanha
  • Almaviva 2003 Tinto
    Chile
  • Bourgogne Aligote Leroy Branco
    França
  • Barbaresco Gaiun Martinenga Tinto
    Itália