Do sector, ao cluster, ao ecossistema, ao valor

Os produtores de vinho, maioritariamente, não têm tido uma visão estratégica alargada

Os portugueses consomem vinho habitualmente, desde há muito tempo, séculos, embora com padrões diferentes. Têm apreciado a evolução positiva do sector porque a qualidade global melhorou – há muito bom vinho! – e a variedade é enorme, desde vinhos de gama de entrada, com diferentes embalagens e algumas muito cómodas, até aos vinhos de topo, os icónicos Barca Velha, Pêra Manca e Vinho do Pico, considerando apenas aqui os vinhos tranquilos, isto é, não incluindo o Vinho do Porto, com uma tradição, qualidade e preços de outros níveis, embora com uma evolução atual descendente.

Um consumo elevado de bons vinhos portugueses

Sobretudo nos anos mais recentes, em todas as regiões passou a haver uma grande variedade de produtos, com qualidade extraordinária e preços muito altos, que não é fácil enumerar exaustivamente. Por exemplo, do Alentejo, uma região recente, se comparada com o Douro e o Dão, uma garrafeira conhecida apresenta uma gama de produtos em que os três mais caros são o Júpiter (1000€), um vinho inovador e que tem os seus críticos, o Pêra Manca, 2015 (405€) e o Mil Reis, 2019 (365€). Uma região em que também se produziu o ‘Melhor Vinho de Portugal, 2024’, o Júlio Bastos, Alicante Bouschet 2018, à venda por 99.89€. Poderiam multiplicar-se exemplos absolutamente semelhantes de outras regiões.

Os turistas, em número crescente, têm contribuído também para o aumento da venda de vinho e a sua satisfação não é menor que a dos consumidores nacionais, pelas mesmas razões. Mas com uma perceção diferente, por comparação com a experiências nos seus países, com vinhos ‘piores’, em geral, e bastante mais baratos, para a qualidade servida.

Como consequência, estes dois conjuntos de consumidores levam a que Portugal tenha o maior consumo per capita, 67,5 l (2022), acima da França, 47,4l e da Itália, 44,4l, e mantendo-se neste patamar há muitos anos.

Por outro lado, as exportações acompanharam estas melhoria de qualidade e maturidade das empresas, apontando aos 1000 milhões €, há vários anos, uma meta que tarda em alcançar-se, sabendo que vem diminuindo o consumo de Vinho do Porto, internacionalmente, compensado com a exportação de vinhos tranquilos de gamas mais altas e, por exemplo, para os países nórdicos, mais baixas.

Quem capta o valor nesta cadeia?

Com estes dados, seria natural que todo o setor estivesse satisfeito e muitas empresas deveriam ter planos estratégicos de expansão internacional ou diversificação. Ora, tal não acontece e, neste período em que começam a fazer-se as vindimas, os alarmes e as preocupações multiplicam-se porque os produtores têm as suas adegas cheias de vinho do ano anterior (ou mais atrás), e não querem comprar as uvas dos viticultores, sendo estes uma miríade de empresas que podem representar mais de metade da produção nacional, por um lado. E, por outro, vários projetos de expansão das décadas anteriores carregam custos financeiros insustentáveis, impondo vendas indesejadas quer a outros produtores maiores ou menos endividados quer a investidores financeiros, portugueses ou estrangeiros, que apostam em ativos valiosos – únicos, como é próprio dos terrenos naturais – com preços abaixo do seu potencial.

Quem está a captar o valor nesta cadeia de produção e venda é, em primeiro lugar, um número muito restrito de empresas, que se contam pelos dedos de duas mãos, que alcançaram uma dimensão no mercado nacional e internacional e vendem mais de 50 milhões €, destacando-se a Sogrape, com vendas de 330 milhões€, as três maiores do Vinho do Porto, Granvinhos, Taylors e Sogevinus e a Casa Santos Lima, por exemplo. Depois, outras que estão a ganhar dimensão e estrutura, por um desenvolvimento estratégico, destacando-se a empresa WineStone, do Grupo Mello, que se está a formar à volta do Monte da Ravasqueira, com uma ambição que não era percetível há muitos anos. Em particular, também identifico mais algumas – entre os Douro Boys, Setúbal e no Alentejo – que estão a conseguir os seus objetivos e a singrar, com as invitáveis dificuldades próprias de projetos ambiciosos internacionalmente.

Para se justificar esta “crise”, poderá ser fácil, eventualmente, apontar o dedo a dois conjuntos de outras empresas, muito diferentes. Em primeiro lugar, às grandes superfícies, que vendem ao cliente final, e têm conseguido cativar e fidelizar os seus clientes com gamas abrangentes e promoções irrecusáveis: os bons vinhos que se produzem, com rótulos atraentes e em prateleiras estratégicas. Em segundo lugar, aos traders, que também têm conseguido bons resultados para si, com as importações de vinho a granel, maioritariamente de Espanha e de outros países da UE, União Europeia, que colocam no mercado com qualidade standard e com preços extremamente baixos, em função da escala com que são produzidos. Produtos colocados à venda com a etiqueta Vinho da UE, muitas vezes em bag-in-box de 5 l (substituindo os velhos garrafões!) ou que são adicionados aos produtos nacionais cumprindo os normativos legais.

Outra coisa é avaliar os normativos legais, aliás bem complexos, que têm uma fiscalização muito difícl, que se torna ineficiente e ineficaz, com várias sobreposições de responsabilidades, que desculpabilizam as respetivas entidades, tornando exequível e lucrativa a fraude.

As acusações dos produtores e viticultores às grandes superfícies não serão inteiramente válidas, substancialmente, porque as uvas não nascem nas prateleiras e todos os vinhos são comprados segundo as leis do mercado, em que a escala dos compradores tem prevalecido, uma vez que acabam por encontrar, sempre, outro produtores que vendem os seus produtos ‘ainda mais barato’, mesmo quando algumas empresas procuram respeitar qualidade e consistência. Além disso, as vendas de marcas exclusivas tampouco têm alcançado dimensões relevantes, isto é, não surgiram empresas especializadas em produzir exclusivamente com rótulos da distribuição, uma vez que há sempre, à disposição, algum produtor que oferece os seus serviços ‘ainda mais barato’.

Soluções clássicas para os mercados atomizados e a fiscalização

Esta fragilidade própria de mercados atomizados tem remédios clássicos bem conhecidos, mas os produtores, maioritariamente, não têm tido uma visão estratégica alargada, e as suas diversas associações nacionais não têm conseguido articular iniciativas robustas e abrangentes em função de integrarem grupos de interesses díspares e mais focados em aspetos parciais, fruto das suas origens tradicionais, em que os negócios formavam os chamados silos paralelos, sem comunicação, e a indústria e o comércio eram forças opostas.

As entidades interprofissionais do sector não têm exercido totalmente as suas competências e poderes, o que explicará, por exemplo, que não se tenha instituído, até agora, um Observatório do Mercado do Vinho de Portugal, à semelhança do que existe na vizinha Espanha, por um lado; por outro, muita da atual turbulência traduz desconhecimento do verdadeiro mercado nacional, que se deverá à inoperância das entidades fiscalizadoras, mas que também se poderá atribuir à falta de peso e pressão por parte dos protagonistas interprofissionais.

As comissões vitivinícolas regionais, pela sua parte, têm feito esforços importantes, destacando-se a dos Vinhos Verdes, que tem tido uma atuação global quase exemplar, de maior cooperação institucional, com bons resultados para todos os atores, stakeholders, digamos em inglês, que fica melhor. A CVRVV conseguiu valorizar os Verdes, ao longo destas últimas décadas, como categoria de consumo, com um leque alargado de preços em Portugal, e uma posição diferenciada nas exportações, especialmente nos EUA, acompanhando uma tendência de consumo para vinhos frescos com um teor alcoólico mais baixo, uma das chaves do seu sucesso.

A estrutura empresarial do sector é equilibrada, com algumas empresas grandes e médias, assim como outras mais pequenas. Há empresas e cooperativas que oferecem gamas de preços com vinhos cada vez mais caros e bem avaliados. Numa busca numa importante garrafeira, os quatro vinhos mais caros são do conhecido enólogo e produtor, Anselmo Mendes, com preços de 99 a 75€, e o quinto é um Aveleda, a maior empresa dos Verdes, com um preço de 59.95€.

O enoturismo e os ecossistemas

Uma área de negócio cada vez mais relevante é o enoturismo. Põe em ação uma necessária cooperação entre múltiplas entidades, sem deixar de suscitar uma saudável concorrência. As centenas de produtores que se lançaram nestes projetos, descobriram uma forma de investir nas suas quintas e instalações para as rentabilizar, baixando os seus custos fixos, assim como experimentar as vantagens evidentes nas margens de comercialização. Mas, se cooperarem podem atrair mais turistas à região, também nacionais, e desenvolver ações coletivas de atração de recursos humanos, preparados e em número suficiente, tendencialmente imigrantes, e para gerirem os problemas logísticos do envio das compras mais volumosas para os turistas que viajam de avião. Uma cooperação proativa com as instituições locais, públicas e privadas, para organizar festivais e outras realizações que forcem a pernoita na região, aumentando a despesa média.

No enoturismo, o consumo aproxima-se da produção, com uma cadeia curtíssima. Contudo, isso não deveria justifica, por exemplo, os preços anormalmente baixos praticados em algumas unidades de enoturismo de produtores, uma desvalorização do seu próprio vinho, de qualidade média-alta, uma oportunidade perdida para o incremento de valor necessário em toda a fileira. O enoturismo é um negócio em que não há silos e uma prevalência da escala, em que se evidencia o modelo de negócio do ecossistema em que unidades independentes, cooperam e competem, focadas no cliente final, resolvendo problemas já identificados ou conseguindo resposta para necessidades latentes.

Um bom exemplo de um ecossistema é a realidade social que é reconhecida nas declarações de Património Cultural da Humanidade, pela UNESCO, bem identificada no Alto Douro Vinhateiro (2001) e na Cultura da Vinha na Ilha do Pico em 2004. Cada candidatura exige uma cooperação orgânica estruturada, com benefícios coletivos muito significativos, que permanecem ativos nas regiões, durante décadas. Aliás, já foram objeto de estudos académicos que avaliaram o respetivo valor criado, que também se evidência na saúde das empresas das regiões, sendo muito chamativas, por exemplo, as que se estabeleceram nesse reconhecimento nessa ilha dos Açores, pela sua absoluta singularidade.

MERCADO DE VINHOS TRANQUILOS: PORTUGAL (CONTINENTE) 
 
ANO: 2024VENDAS ATÉ MARÇO  
  
DISTRIBUIÇÃO + RESTAURAÇÃO
Peso nas vendas
VOLUME             (litros)2,0%DOP e IGP5,6%5,6%45,0%
Vinho [ex-Mesa]-0,8%-0,8%55,0%
VALOR                             (euros)11,8%DOP e IGP16,8%16,8%67,4%
Vinho [ex-Mesa]2,9%2,9%32,6%
PREÇO                                              (€/litro)9,7%DOP e IGP10,6%10,6% 
Vinho [ex-Mesa]3,7%3,7% 
DISTRIBUIÇÃO
Peso nas vendas
VOLUME             (litros)-0,3%DOP e IGP2,1%2,1%48,6%
Vinho [ex-Mesa]-2,4%-2,4%51,4%
VALOR                             (euros)4,2%DOP e IGP5,9%5,9%73,4%
Vinho [ex-Mesa]-0,3%-0,3%26,6%
PREÇO                                              (€/litro)4,4%DOP e IGP3,7%3,7% 
Vinho [ex-Mesa]2,2%2,2% 
RESTAURAÇÃO
Peso nas vendas
VOLUME             (litros)6,6%DOP e IGP15,5%15,5%35,1%
Vinho [ex-Mesa]2,0%2,0%64,9%
VALOR                             (euros)18,2%DOP e IGP28,1%28,1%58,8%
Vinho [ex-Mesa]4,6%4,6%41,2%
PREÇO                                              (€/litro)10,8%DOP e IGP11,0%11,0% 
Vinho [ex-Mesa]2,6%2,6% 
O mercado dos vinhos até março de 2024, ponderando o peso relativo dos vinhos DOP e IGP

Professor emérito da AESE Business School