A generosidade da natureza e a (des)inteligência do Homem

O Homem entrou num processo de autodestruição, desvalorizando toda a evolução.

A Humanidade atravessa uma era complexa. O menosprezo pelo conhecimento produzido ao longo de décadas, séculos e até milénios, em particular nos anos mais recentes, está a conduzir o Homem para um dilema, uma crise de identidade, um beco sem saídas.
A agricultura é a actividade que está na base da nossa vida. No entanto, por razões que não alcanço, alastra na opinião pública a ideia de que a agricultura é uma actividade nociva, gastadora, poluidora, destruidora dos recursos naturais. Nem se pondera. Diz-se…
Cresce a desconfiança sobre os processos mais modernos que o conhecimento vem colocando ao dispor de agricultores e empresas do sector produtivo e transformador. Endeusam-se palavras como Bio, Orgânico ou Sustentável, num alastrar de ignorância (devido ao endeusamento), alimentada pela demagogia vertida nas redes sociais, essas sim… “da maior segurança, donas da verdade e da razão, verdadeiros depósitos de sabedoria impoluta e isenta”.
A desconfiança mina as relações entre pessoas, levando mesmo a dificultar algumas escolhas como, por exemplo, na hora de decidir o que comprar para comer. A confusão está instalada. Algo de errado está a acontecer e urge inverter este delírio sem nexo.
Dois exemplos: Não há dia em que não se fale de água, da sua escassez, da necessidade de se melhorar a sua gestão. Secas severas e extremas, alterações climáticas, protecção dos recursos endógenos, transição energética, sustentabilidade…. Fala-se, mas tarda-se em agir e a implementar soluções.
Também a energia está na ordem do dia. Precisamos deixar de usar combustíveis fósseis. Há que promover o uso de energias alternativas, renováveis e limpas. Vento, sol e água são as principais fontes desta energia que nos pode salvar e permitir continuar a viver neste planeta que não tem lado B. Nesta temática muito se fala, mas age-se pouco e muitas vezes se aponta, com desdém, o dedo à agricultura.
Sobre a água: a utilização de água por parte dos agricultores é sistematicamente vista como um abuso, uma usurpação de um recurso precioso que deve ser preservado, protegido e intocado. Outro endeusamento sem nexo. Na região do arco mediterrânico da Europa, países como Portugal, Espanha, Itália, Grécia e parte substancial de França, não podem prescindir de usar a água que acorre aos seus territórios se quiserem manter uma agricultura sustentável, produtora de alimentos saudáveis e a preços competitivos. É essa actividade, essencialmente, que contribui para a soberania alimentar, permite ocupar o território, criar riqueza e trabalho.
Para combater o agravamento provocado pelas alterações climáticas, é necessário deitar mão de toda a tecnologia que se vem produzindo. A água acorre ao território de forma diferente da que precisamos, mais dispersa no tempo, mais intensa nas escorrências e em menor quantidade nalgumas regiões. É por isso necessária uma gestão ainda mais criteriosa, pois serão ainda maiores os períodos de carência no futuro.
Uma coisa é fazermos isso – uma gestão criteriosa –; outra diferente é assumir-se uma posição de recusa em se enveredar por soluções tecnicamente viáveis, com a desculpa de que o uso do recurso o coloca em causa e o melhor será reduzir, conter ou mesmo impedir o seu acesso. Menos ainda se aceita reforçar o seu armazenamento.
De notar que a COP28 alertou já para a possibilidade de, dentro de pouco tempo, poder haver carência de alimentos no mundo. “Os agricultores gastam demais…” Quem não ouviu isto já dezenas de vezes da boca de altos responsáveis de organismos oficiais, instituições, universitários, políticos e até governantes? É quase diária a notícia de que a seca se agrava, que não chove o suficiente para repor os níveis das albufeiras (é verdade), que se não fosse a rega a água chegava para vários anos para o abastecimento público, enfim, um rol de afirmações gratuitas, as mais das vezes desconexas.
A rega geralmente inicia-se em Março/Abril e termina no Outono. É necessário regar durante mais de seis meses, situação que, com o agravamento das secas, terá tendência em aumentar. É normal os agricultores regarem durante todo esse período, levando alguns a pensar que estarão a “gastar demais”, colocando o recurso em risco. Barragens em baixo, aquíferos esgotados, culturas mal escolhidas, enfim, todo o tipo de acusações que “ajudam à festa”. O que interessa é acusar e denegrir a agricultura. O bode expiatório foi encontrado.
Pois vejamos: a área total de regadio é de aproximadamente 650 mil ha, para os quais serão necessários (grosso modo e por excesso) 5000 hm3 de água. O País (continente) tem 9 milhões de hectares. A chuva que caiu no território, apenas em Outubro passado, considerando um valor médio de 200mm, terá originado uma afluência da ordem dos 18.000 hm3, mais do triplo do volume utilizado na rega da totalidade das culturas durante o ano.
A Natureza, generosamente, “devolveu” ao País toda a água usada em toda a rega de todas as culturas realizadas durante todo o ano, em menos de trinta dias… É obra!
Ora, é mais que provável, mesmo com seca, que chovam anualmente bem mais de 200mm na média do País, o que significa que, afinal, Portugal não tem falta de água; tem, isso sim, falta de soluções que permitam reservar e salvaguardar em quantidade a água suficiente para fazer face às suas (todas) necessidades, crescentes, devido às alterações climáticas.
A Natureza foi generosa, mas cabe ao homem fazer a sua parte. Se chove mais intensamente num local que noutro, tem de ser o homem a resolver esse problema. “Exigir” à Natureza a “paparoca” toda, fazendo uma distribuição uniforme, levando a água para onde fará mais falta na altura certa… é pedir demais. Se chove no Norte e não chove no Sul, há que trazê-la, armazená-la convenientemente e usá-la com parcimónia, assegurando o desenvolvimento das múltiplas actividades económicas e sociais que dela dependem: a Vida. Água temos; não temos é tido a inteligência para a usarmos em nosso proveito de forma correcta.
Quanto à energia e no que respeita à busca de soluções que nos facilitem o acesso às alternativas disponíveis, como a produção fotovoltaica de electricidade, não se entende porque não é possível criar como que uma “conta corrente” que permita a quem produz em períodos que não a pode usar, vir a usá-la mais tarde, quando dela necessitar. Produzir de dia entregando à rede, guardando “em memória” essa energia, para que a rede lha “devolva” à noite, quando a pretenda utilizar e a não pode produzir.
Um agricultor que instale uma central fotovoltaica para o seu equipamento de rega, que para ser mais eficiente deve preferencialmente regar à noite, deveria poder produzir energia no período diurno criando como que um “crédito”. Quando precisar de regar, usa esse crédito, equilibrando a utilização da energia consumida com a que produziu. No final, com os necessários ajustes relacionados com os valores diferenciados das tarifas, etc, acertam-se as “contas”. O País agradece, o agricultor contribui para a descarbonização produzindo energia limpa e renovável, os seus produtos são mais competitivos, poupa água e é mais amigo do ambiente.
Este sistema funciona no Brasil e não apenas para os agricultores. Também os domésticos podem entrar neste esquema desde que o tal “crédito” (energia produzida “em memória”), seja usado e gasto no espaço de um ano. Se funciona noutros países, porque não se estuda uma solução semelhante entre nós?
Nestas questões, penso conhecer a resposta de falta de arrojo e visão na resolução dos graves problemas. É mais fácil empurrar com a barriga, alimentando a demagogia que mina o dia a dia e põe uns contra os outros, em vez de assegurarmos o futuro e criarmos riqueza. Empobrecemos, confusos e submissos.
Vivemos uma grave crise, a crise do crédito. Ou melhor, a crise do acreditar. As pessoas não acreditam, rejeitam; não estudam, ouvem dizer; não discernem, reagem; não aprofundam, deixam-se ir; desconfiam da ciência; negam os factos; as evidências confundem-se com ilusões; a confiança deixou de ser conquistada e passou a ser um jogo de sorte e azar.
Terá a sociedade entrado num período de retrocesso civilizacional? De tanta escolha hoje possível, de tanta facilidade ao alcance de um click, de tanta “fartura grátis”, o Homem entrou num processo de autodestruição, desvalorizando toda uma evolução a que chamámos progresso. Como inverter este rumo? Receio saber o final da história, se assim continuarmos. Meditando nas mensagens que o Papa nos deixou quando das Jornadas da Juventude em Lisboa, quem está perdido não é quem não sabe onde está; é quem não procura saber para onde ir. l

Eng. Agrónomo e ex-presidente da CAP