Há mérito num Estado acionista?

O conceito de empresa pública devia ser refundado longe dos dogmas do passado recente

Dedicámos os anteriores artigos a analisar quer as receitas, quer as despesas do Estado, assumido um conjunto de princípios divergentes das regras orçamentais actuais e do pensamento dominante. Julgo que vale a pena nesta coluna de opinião dedicar algumas reflexões não aos princípios, mas às metodologias de gestão da causa pública.

Escolhemos para começar, neste objetivo, a função accionistas do Estado e a sua actuação no mercado através de empresas públicas. Isto é, as empresas totalmente ou maioritáriamente detidas pelo Estado.

Ora, o conceito de Estado accionista é aparentemente uma das maiores divisões ideológicas que tem surgido na sociedade actual, entre uma esquerda colectivista que vê com agrado a intervenção do Estado na economia e uma direita liberal que nega a utilidade de o Estado em se imiscuir na esfera da intervenção dos privados através de empresas por si tuteladas.

Porem, não é esta divergência ideológica o essencial da questão que aqui coloco. A questão central para esta reflexão é perceber porque decide o Estado, quando decide intervir em sectores da actividade económica, optar pela forma empresarial e não pela administração direta. É ideológico decidir se o Estado deve ou não gerir auto estradas, hospitais ou Bancos. Mas já é meramente metodológico perceber porque o decide fazer através de uma forma empresarial e não por administração direta.

Em princípio, o Estado ao decidir intervir na sociedade através de uma forma empresarial estaria a assumir três objectivos conceptuais.

Primeiro, estaria a assumir uma opção por uma gestão totalmente autónoma e responsável com objectivos definidos e modelo de governance e accountability adequados.

Segundo, estaria a assumir que a empresa visará os seus objectivos específicos de uma forma sustentável e lucrativa.

Terceiro, estaria a pressupor que “a sua” empresa irá concorrer no mercado em igualdade com qualquer empresa privada que nele opere ou possa operar.

Estes três objectivos sempre estiveram presentes na criação de empresas públicas e sobretudo na legislação de enquadramento que ao longo dos tempos lhe foi sendo aplicada. Apenas a questão da sustentabilidade e lucro foi de alguma forma mitigada por objectivos mais gerais (o Dec. Lei 558/99 falava no seu artº 4 no “contributo para o equilíbrio económico e financeiro do conjunto do sector público” e o Dec. Lei 133/2013 não se refere ao assunto). Mas atendendo a que o objectivo de uma empresa é sempre o lucro, a opção por esse modelo de gestão da coisa pública não deixa dúvidas. Já a autonomia e a concorrência estão bem presentes em todos os textos legislativos de enquadramento.

Devido à tendência apropriativa pós-revolução de abril (e sobretudo após o 11 de Março) o sector empresarial português ganhou uma dimensão anormal que a fase das privatizações não conseguiu anular completamente.

Assim, as empresas públicas representam uma importância significativa no tecido económico português um peso, aliás, bastante superior à média europeia. O sector empresarial público era, em 2022, constituído por 459 unidades, empregando 197 mil trabalhadores e representando uma divida total superior a 36 mil milhões de euros.Mas se as empresas públicas tivessem mantido os seus três objectivos, poderíamos estar perante uma interessante discussão ideológica mas não perante uma questão de essência metodológica.

Mas é exactamente isso que se passa. Primeiro, porque a gestão da coisa pública foi-se degradando, permitindo a utilização das empresas públicas para fins bem diferentes daqueles que as justificavam, nomeadamente para efeitos da desorçamentação de uma boa parte da despesa do Estado e sobretudo para desconsideração para efeito da dívida pública de uma parte significativa de divida que o mercado só aceitava porque acreditava que estava protegida por uma garantia “reputacional” do Estado.

Segundo, porque a reacção a essa degradação foi um modelo dirigista e centralizador criado durante a intervenção da Troika com efeitos igualmente nefastos. As empresas públicas não só foram maioritáriamente colocadas no perímetro da dívida como, em razão disso, submetidas a uma disciplina férrea de vistos prévios, de cabimentos e de autorizações para poderem assumir compromissos correntes e limitadas na decisão de investirem.

A empresa pública moralizou-se em contabilidade pública, mas perdeu em autonomia de gestão, em foco no lucro e em capacidade concorrencial.

Em linguagem comum, podemos dizer que a Gestão Pública senão morreu da doença tende a morrer da cura. As empresas públicas ficaram mais públicas, mas quase nada empresas.

E é pena.

É pena porque em determinados falhas de mercado, em determinadas situações estratégias, em determinados momentos excepcionais, pode ser positivo o Estado alocar capitais a empresas de uma forma racional.

E curiosamente isso não se fazia apenas através de empresas públicas, fazia-se em empresas de capital misto. E o fim da empresa pública corresponde também ao desinteresse nas empresas de capital misto, forma partilhada de desenvolver projectos de grande interesse nacional onde o capital privado nacional não abunda, sobretudo nas infraestruturas essenciais ao desenvolvimento da economia. E as empresas de capital misto já serviram interesses quase soberanos. (Por exemplo, o Banco de Portugal teve capital privado até 1974).

Aliás, essa falha é visível quando, não raras vezes, o Estado português é substituído nesse tipo de empresas (sobretudo empresas infraestruturais) por … Estados estrangeiros. E os accionistas privados não se queixam.

É por isso que o conceito de empresa pública deveria ser refundado, longe dos dogmas do passado recente, longe da discussão ideológica e centrado nos objectivos típicos da boa governação do capital accionista.

Ao contrário do que se pensa, esta refundação é urgente para devolver à gestão pública a qualidade de que necessita para assegurar presença em mercados débeis, em situações especificas e em sectores cuja nacionalidade accionista faz sentido.

Gestor e ex-presidente do Novo Banco