Nuno Palma: “Acabar com os fundos (europeus) teria benefícios grandes”

50 anos depois do que “teria sido bem possível ter acabado de outra forma”, Nuno Palma, com o olhar crítico que a distância facilita, fala-nos de “um país que não quer mudar”, cujo declínio “já está a acontecer” e em que os reformistas ficam “a pregar no deserto”.

O trabalho de Nuno Palma ficou conhecido dos leitores portugueses com a publicação de “As Causas do Atraso Português” em novembro de 2023. Com o propósito declarado de corrigir a “miopia”, a “falta de consciência crítica” e a “desinformação” na análise de Portugal, o livro procura trazer para o grande público os números e os estudos com que na academia se tem procurado dissecar a evolução — ou falta dela — de um país para que “o atraso não era inevitável”.

A propósito da 5ª edição d’”As Causas” e sob o mote dos 50 anos da revolução de 1974, pedimos a este professor e investigador da Universidade de Manchester que nos ajudasse a perceber porque “o peito ilustre Lusitano” não tem já hoje o vigor que o poeta lhe reconheceu.

A conclusão sumária que se pode retirar do seu livro é que Portugal, mais talvez que outros países, mantém-se “prisioneiro” da História. Num país com os hábitos de leitura mais baixos da Europa, segundo a Associação Portuguesa de Leitores e Livreiros, surpreende-o que se continue a tomar opções políticas erradas?
O meu livro explica como em Portugal o capital humano baixo, as instituições fracas e o contexto cultural nascido da natureza da transição para a democracia, levam a que uma compreensão deturpada sobre a nossa História pese muito sobre as escolhas políticas que a população faz. Não chega dizermos que Portugal é um país mal gerido, em que tantas vezes as políticas públicas são erradas e não há reformas; é preciso percebermos porque é que é assim.

As polémicas e “guerras culturais” sobre o passado e a identidade nacional são um produto consciente ou inconsciente desta realidade?
As polémicas são, por vezes, propositadas – a intenção sendo mobilizar certas claques – mas o seu sucesso retórico também depende da recetividade da audiência.

Num estudo divulgado esta sexta-feira, “Os Portugueses e o 25 de Abril”, 65% dos inquiridos escolheram o 25 de Abril como o facto mais importante da História de Portugal. Concorda com esta classificação?
É um exercício sem grande sentido falarmos de forma genérica em “rankings” de momentos mais importantes, comparando situações muito diferentes ao longo de diferentes séculos. O 25 de Abril é um momento fundamental na História do país, sem qualquer dúvida, pois levou a uma democracia com características muito mais abrangentes do que as que tinha havido antes, como na Primeira República e durante períodos da chamada Monarquia Liberal. Mas parece evidente que a sua escolha por mais de metade dos inquiridos também se prende com a sua proximidade histórica.

É reconhecido que um dos indicadores que identifica a esquerda e a direita no país se prende com o destaque ao 25 de Abril ou ao 25 de Novembro. Como vê esta “fronteira”?
O 25 de Abril transformou-se numa democracia também graças ao 25 de Novembro. Poderia ter-se transformando noutra coisa. É evidente que sem o 25 de Abril não haveria o 25 de Novembro. Também foram essenciais as eleições do 25 de abril de 1975. A ter de escolher apenas uma data, parece inegável que o 25 de Abril é mais importante.
Mas talvez o problema seja mesmo a insistência em querer escolher apenas uma data para representar uma transição que foi gradual e teve muito conflito e dores de crescimento. E que acabou por ser como foi, mas teria sido bem possível ter acabado de outra forma.
Também por isso, considero lamentáveis as declarações de políticos como Pedro Adão e Silva que afirmam que o 25 de Novembro divide e diz pouco à sociedade portuguesa. É evidente que as comemorações do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril deveriam, de forma pedagógica, dar alguma importância e mesmo centralidade ao 25 de Novembro.

No livro nota que o “controlo da memória coletiva” em relação ao Estado Novo é uma estratégia que “irá continuar por bastante mais tempo”. O mesmo estudo desenvolvido pelo ICS/ISCTE revela que a propensão para se considerar que o Estado Novo tinha mais de negativo do que positivo cresce com o nível de instrução. É expectável que a distância e o estudo do período pós-revolucionário venha informar essa memória e atenuar o efeito de captura?
Esse resultado parece-me natural: eu próprio considero que o Estado Novo tinha mais de negativo do que de positivo, pois dou muito valor à liberdade, independentemente dos bons resultados no que toca à recuperação do atraso económico do país (que de resto, em finais do regime, provavelmente não iriam durar muito mais, pelos motivos que explico no livro).
Quanto à segunda parte da sua pergunta, parece-me que sim: esse passado ainda é recente, mas as novas gerações já mostram mais distanciamento em relação ao regime, apesar da doutrinação ideológica de que muitas vezes são alvos nas escolas e universidades, que nem sempre permite ver o passado de forma objetiva.

Numa entrevista com o autor que compara os fundos comunitários a drogas, era inevitável tocar nesse assunto. Embora reconheça o efeito que o “desmame” teria na crise sucedânea, parece ser um verdadeiro “salto de fé”. Como pode ter esperança que, mantendo os atores e as instituições do país, a aposta teria retorno para Portugal?
Não sou médico, logo fiz essa analogia por motivos pedagógicos e com algumas reservas. O essencial é que o país tem de refletir sobre o caminho, claramente errado, que tem estado a seguir há mais de duas décadas – mas não o tem feito.
O fim dos fundos, ou mesmo apenas o seu desmame gradual, iria forçar isso a acontecer. Acabar com os fundos teria benefícios grandes, mas principalmente a prazo, e espalhados por todos, enquanto os custos seriam rápidos e concentrados em quem mais deles hoje beneficia. Logo, estes últimos têm o incentivo a fazer muito barulho. É natural, ainda que míope e egoísta.
Por outras palavras, os atores, instituições e circunstâncias – inclusivamente culturais – não são um dado adquirido. O fim dos fundos levaria a reformas e à sua substituição.
Uma crítica frequente que ouço sobre o meu livro é que a culpa não é dos fundos, mas sim da “má utilização” que lhes é dado”. Por vezes, isto é dito à direita, sendo uma variante da tese “a culpa é só e apenas do PS”, que não subscrevo. A verdade é que no contexto existente, é inevitável que os fundos sejam mal utilizados.

São recorrentes, ao longo do livro, as críticas às elites políticas e económicas, mas acaba por concluir que é a “falta de procura do eleitorado” que conduz à inexistência de propostas políticas reformistas. No entanto, o eleitorado também se posiciona, e é mesmo condicionado, pela oferta política disponível. Há solução para esta “pescadinha de rabo na boca”?
O país não quer mudar, nem vai querer enquanto os fundos chegarem nos montantes que têm chegado. Não há avaliações do que se faz, sabe-se pouco dos modelos que funcionam dos outros países. Veja o caso de alguns exemplos de grandes reformas que o país precisa que menciono no livro. Por exemplo, toda a administração pública – dos professores à magistratura, passando pela saúde – precisa de uma cultura de mérito para promoção na carreira. Mas não é isto que acontece.
Veja o caso das reformas do governo da justiça propostas por Nuno Garoupa. O país tem uma justiça disfuncional, principalmente nos tribunais administrativos e fiscais. Tem uma regulação disfuncional e muitas vezes capturada. Garoupa faz sugestões concretas, como abandonar o direito processual francês e ir na direção do holandês/coreano; investir na estatística e na avaliação de resultados; acabar com as portas giratórias (por exemplo, quem saia da magistratura para ir para a política não pode voltar).
Há também as questões relativas à reforma da lei eleitoral: acabar com o monopólio dos partidos e permitir listas independentes, por exemplo (porque não deveriam chegar 100 assinaturas?).
Mais se poderia mencionar, como a reforma das leis laborais propostas por Pedro Martins, que iriam trazer mais flexibilidade ao mercado laboral, ficando este mais adequado ao mundo globalizado do presente.
Mas não vale a pena entrar em detalhes: o ponto é que o país não quer mudar e quem propõe reformas fica muitas vezes a pregar no deserto. Os políticos sabem que o eleitorado não quer reformas. Logo, as reformas não são feitas ou são feitas apenas “a fingir”, isto é, no papel, já nascendo letra-morta.

É bastante crítico da comunicação social e da intelligentsia “disfarçada de historiadores e intelectuais”. A pergunta coloca-se então: onde estão os intelectuais portugueses?
Fora do país ou discretamente dentro. Há exceções, claro. Mas esta é a regra. Quem está dentro, genericamente, ou não tem exposição pública – em muitos casos, e bem, por escolha própria – ou só raramente é independente. No que toca à História, o que não faltam no país são “estoriadores”. Mas esses, na verdade, são políticos disfarçados. Nem os vou mencionar.
Eu até gostava de ter adversários intelectuais à altura em Portugal. Porque pessoas como Diogo Ramada Curto – que, ao que parece, vai ser o novo diretor-geral da Biblioteca Nacional – adoram atacar-me, mas coitadinhos, ficam desorientados… aquilo não dá para mais. A recensão do meu livro que Ramada Curto escreveu no Expresso, por exemplo, não passa de um monte de mentiras e deturpações, como expliquei no “Portugal no Longo Prazo.” [n.r.blogue de Nuno Palma].
Qualquer pessoa que leia o meu livro e também essa recensão só pode verificar a enorme desonestidade intelectual desse autor. Mas, enfim, o próprio Expresso tem mostrado já não ser um jornal com grande seriedade.
Mas há excelentes historiadores a trabalhar em Portugal. Entre os profissionais, por exemplo, Fernando Martins da Universidade de Évora tem uma biografia de Pedro Teotónio Pereira que recomendo sem reservas. Duncan Simpson tem bons trabalhos sobre as denúncias à PIDE, entre outras matérias. E há ainda outros mais ou menos amadores, mas ótimos, como o Nuno Gonçalo Poças, que tem três livros notáveis.
Aliás, relativamente a este, nomeadamente no que toca ao seu primeiro livro sobre as FP-25, deixo a pergunta: será que um livro daqueles podia surgir de uma tese autorizada a ser escrita em muitas universidades portuguesas? Tenho dúvidas. No caso de algumas universidades e departamentos, tenho a certeza da resposta negativa.

Numa entrevista recente, afirmou que o seu conselho para os jovens é que “votem com os pés” porque “Portugal não vos vai dar um futuro decente”. Esta solução não redunda no confirmar do declínio do país?
O declínio já está a acontecer e os jovens são muito maltratados. Fazem bem a votar com os pés, não preciso de ser eu a dizer-lhes, já o estão a fazer. O país é que tem obrigação de lhes dar condições para que não o façam.

Saúda Lucas Pires por liderar um movimento de liberais e pró-concorrência, mas aponta que o ex-líder do CDS falhou “porque tinha de falhar no contexto que existia, que é aproximadamente o mesmo que ainda hoje existe”. Vê no panorama político atual algum(ns) herdeiro(s) do Grupo de Ofir? Ou já todos se adaptaram “à realidade do país”?
Parece-me que não existem porque não há espaço para existirem. Não há “procura” do eleitorado, pelos motivos que expliquei.
Note que até a IL não passa dos 5%, apesar de para isso também contribuir a natureza iliberal do partido na sua política interna. E o PSD não está a fazer reformas profundas, parecendo estar condenado a prazo, no cenário mais provável.
Em ambos os casos, hesito em dizer que lamento o seu insucesso, pois ambos se deixaram capturar por interesses corporativos.
A política devia ser uma profissão nobre. Mas, havendo certamente como em tudo exceções, para grande parte dos políticos em Portugal, a política não é um ato cívico, mas sim um elevador social e uma forma de conseguir tachos, infelizmente.