“Devia-se trabalhar só quatro horas por dia”, defende presidente do grupo Kyaia

Grupo Kyaia, dono da marca Fly London, celebra 40 anos, fatura cerca de 30 milhões de euros (metade do que antes da pandemia) e emprega 400 pessoas.

Grupo Kyaia celebra 40 anos, fatura cerca de 30M€ (metade do que faturava há uns anos) e emprega 400 pessoas. Fortunato Frederico revela a história de resistência perante a crise do setor do calçado e a sua visão para o futuro do país.

O Grupo Kyaia faz 40 anos este ano e a marca muito conhecida, Fly London, faz 30. Como é que está o negócio atualmente?
Fortunato Frederico – Está como o mundo. Complicadíssimo.

Estamos a falar de um grupo que já esteve a faturar à volta de 60 milhões ou mais?
FF – Em 2017, chegámos quase aos 65 milhões e hoje, com o fecho das sapatarias, que era um volume de 20 e tal milhões, passámos para quase metade.

Atualmente, com tudo o que está a acontecer, o que é que isso significa do ponto de vista da gestão?
FF –Temos de ser mais ágeis, temos de ter dinheiro para poder pagar muitas coisas antecipadamente porque os mercados hoje estão assim. Temos de ser curiosos, saber onde é que há matérias-primas mais competitivas. Perante muitas dificuldades temos de conseguir gerir o nosso negócio.

Em relação às matérias-primas, de que países é que são importadas?
FF – Importamos da China ou da Índia, mas há matérias-primas que vêm da Itália, que têm os mesmos problemas de transporte porque, muitas vezes, eles não recebem as mercadorias, o que depois atrasa também as entregas. Há, efetivamente, uma desorganização total da máquina que nós, antes da pandemia, tínhamos a funcionar, que nos permitia crescer e ter horizonte. Neste momento, perdemos isso tudo.

A instabilidade no Médio Oriente e os ataques de “piratas” no Mar Vermelho estão a prejudicar?
FF – As mercadorias que vinham da Índia demoravam um mês a chegar cá. Agora passaram para dois meses e qualquer coisa, e mais caro, porque têm de vir à volta. E numa programação de uma fábrica que está sempre à espera das matérias-primas, dosprodutos, para acabar o seu produto, um mês desorienta tudo.

Atualmente têm fábricas em Guimarães e em que outros locais?
FF – Paredes de Coura.

Quantas pessoas é que o grupo emprega?
FF – 400. Eram 620, mas foram saindo, lentamente, durante 6-7 anos, à medida que as sapatarias eram desativadas. Tínhamos de pagar a garantia bancária, depois aguentar a garantia bancária e depois tínhamos de esperar o fecho da sapataria para poder pagar os direitos aos trabalhadores para eles saírem descansados.

Claramente a pandemia foi um dos principais problemas que enfrentaram, certo?
FF – Foi o detonador de toda esta crise.

Nos últimos anos, como todas as empresas dentro da indústria, o custo da energia também pesou muito?
FF – Há seis anos, investimos na energia fotovoltaica e somos autónomos há já um tempo em cerca de 60-65 por cento. Estamos a investir novamente, já amortizámos os primeiros equipamentos e estamos a reforçar para ver se conseguimos uma autonomia maior.

Qual é a tendência que se observa no consumidor português ou, por exemplo, em Inglaterra? O que estão a produzir mais?
FF – O mercado está muito suscetível à mudança. Hoje, a nossa sociedade vive a vida à base do flash. Não há aquela cadência certa que vinha do passado. Tínhamos os nossos clientes, tínhamos as sapatarias, tínhamos os vendedores, havia uma máquina montada que foi montada durante os últimos 30-40 anos e funcionava bem. Muita gente enriqueceu com este tipo de negócio.

Isso implicou também estar mais atento, até do ponto de vista do marketing e dos canais digitais, para tudo que é tendência também nas redes sociais?
FF – Há quatro anos, montámos o meu sonho para a indústria: uma pequena Amazon. Portugal faz 80-90 milhões e eu pensei em vender pela minha plataforma digital, que era a Overcube. A minha ideia era ter uma pequena Amazon que escoasse a nossa produção e escoaria também partes das marcas portuguesas que iam para o mercado internacional.
Se nós vendêssemos 10% dos sapatos que exportávamos, era um negócio da China, um bom negócio. Mas também não funcionou, devido, primeiro, à mão-de-obra caríssima; segundo, uma mobilidade terrível. Era uma movimentação que não permitia estabilidade nenhuma.
A Overcube tinha lá 30 engenheiros a trabalhar, hoje tem 3 ou 4.

Atualmente, qual é a produção diária de sapatos do grupo?
FF – Temos uma linha parada, mas será 2500 a 2700 sapatos por dia.

Durante muitos anos esteve à frente da APICCAPS, a Associação Portuguesa dos Industriais do Calçado, Componentes e Artigos de Pele e seus Sucedâneos. Como vê, neste momento, o setor em Portugal?
FF – A crise é como o sol, quando nasce é para todos. A crise está implantada no setor do calçado. O calçado tem, efetivamente, de fazer muito trabalho de pesquisa, de investimento em marketing, de educação das pessoas, de valorização dos trabalhadores. Há um conjunto de novos factores que, no passado, não precisávamos. Era só produzir, depois o dinheiro vinha e íamos resolvendo as situações.

Houve uma subida na cadeia de valor, o próprio preço e a perceção externa do calçado português também aumentou e o calçado português ficou em segundo lugar, abaixo da Itália. Há o risco de isso já não acontecer atualmente?
FF – Desde que o homem se põe a pé de manhã, os riscos são sempre permanentes. Mas a imagem do calçado beneficiou muito de uma certa estratégia da APICCAPS, de manter uma imagem límpida e de progresso.
Lembro-me dos projetos do RETEX e de outros que valorizaram a indústria . Aquela imagem do trabalho infantil, do trabalho sem condições, tudo isso foi desaparecendo com o processo de melhorar a imagem, quer da indústria, quer do produto.
É pena o nosso país não fabricar muitos sapatos. Se nós fabricássemos mais e com maior valor acrescentado, a indústria talvez estivesse melhor do que está hoje.

Já teve aqui na sua fábrica presidentes da República, primeiros-ministros, ministros da Economia. Como é que olha para a situação política e económica atual?
FF – Já não olho para isso. Olho para a Utopia, de Thomas More, porque é a única coisa que me promete que o mundo pode ser melhor. De resto, não tenho mais esperança.
Continuo a lutar, mas não me posso encostar à porta a pensar que vão lá bater muitas vezes e que ela se vai abrir.

Mas tem um projeto precisamente com uma preocupação social. Qual é o objetivo da fundação?
FF – A fundação já está a funcionar há 5 anos e desde aí que atribui o seu prémio a alunos de mérito. Os miúdos vêm cá e recebem aqui o prémio, nesta sala.
Quando era miúdo recebi, aos 10 anos, um prémio da 4.ª classe, de melhor aluno da Donim. Como o meu filho tinha falecido, resolvi fazer, em homenagem aos meus filhos, essa fundação, que se chama Frederico Nuno.
Todos os anos atribuímos prémios pelas escolas Donim, que foi por onde recebi o prémio, Penselo, que é onde tenho a fábrica, e Paredes de Coura, onde está a filial, um prémio ao melhor aluno da 4.ª classe.

Essa é a parte em relação aos mais jovens, mas tem também um projeto a pensar nos seniores?
FF –Temos em Paredes de Coura um espaço que é na cantina. Reservámos metade desse edifício para uma creche. Agora, estamos à espera, mais uma vez, que a burocracia desbloqueie para transformar esse espaço num centro de dia para os pais dos trabalhadores que deram início àquela empresa em Paredes de Coura. Deve começar a funcionar ainda este ano.
A prazo temos o complemento da reforma, que é um sonho que eu também tenho porque acho que temos de olhar para quem nos fez bem e procurar também fazer bem. Esse complemento da reforma começará a funcionar daqui a 10 anos.

Quando eu for para a reforma, terei 91 anos e já não poderei ir para a fábrica. Vou tentar também ter direito a esse complemento da reforma. Os colaboradores também vão ter, com certas regras que vão ser estabelecidas, está-se a tratar disso. Quando se reformarem, a empresa completará o ordenado com esse complemento da reforma.

“À minha maneira”

Quem é Fortunato Frederico e qual é o seu estilo de gestão e de liderança?
FF – Ditador.

Quer as coisas à sua maneira?
FF – Se não for assim, a alcateia entra toda em luta uns com os outros. Ditador é uma forma de expressão, forte, mas eu gosto de fazer as coisas à minha maneira. Provei durante estes anos todos que nunca cometi asneiras, nunca fiz nada que não tivesse reversão. Acho que é uma forma que tenho de impor as coisas e para impor ordem na casa. Porque uma casa sem ordem é aquilo que se vê.

Aqui na fábrica tem de haver regras bem definidas e, às vezes, essa conjugação de querer que as coisas funcionem também nos traz algum dissabor. Tive aqui um problema porque tínhamos um bocado de desordem nos intervalos e a produção deixou de ter a atenção e o cuidado que exige. Tive de impor um intervalo. Parávamos 10 minutos para tomar café e esses 10 minutos, como se estava parado, não contavam. Apareceu aí alguém a dizer que não era assim e fizeram-me a vida negra. Durou três anos, mas já está tudo resolvido.
Foi um problema duro para mim porque eu sempre estive do lado dos trabalhadores. Eu lutei pelo salário mínimo, fui eu que cheguei aqui à fábrica e dei ordens para se pagar essa diferença. Quando foi da igualdade das mulheres, fui o primeiro a pagar às mulheres o mesmo nas categorias respectivas. Sempre tive esta visão da vida e não fui reconhecido. Pelo contrário, fui maltratado.

“Sim, conseguimos”

Qual terá sido a maior adversidade que encontrou e como é que a ultrapassou?
FF – A morte do meu filho. Custou muito a ultrapassar. Em vez de ir para missionário para África, que era aquilo que ele queria que eu fosse, aguentei aqui. Foi passado com a ajuda de amigos, com a ajuda da própria APICCAPS, que me acompanhou muito nesse período. Hoje tenho a fundação que me dá uma certa alegria interior, que sei que vai perdurar por alguns anos, até para quem ficar cá e a souber administrar. As crises ultrapassam-se. Só não se ultrapassam as coisas dos sentimentos. Isso é que é difícil de ultrapassar, mas o tempo também faz esquecer.

E do ponto de vista da gestão da empresa?
FF – Crises houve sempre, não pense que a indústria cresceu sempre como o leito do rio Nilo. Isto foi e é um trabalho muito árduo. Lembro-me de que, quando começámos esta empresa, passámos aqui algumas noites. Escurecia e nós acabávamos com o sol a nascer porque tínhamos de trabalhar toda a noite. Hoje, a dificuldade é termos trabalhadores a trabalhar; é difícil porque aumentamo-los 100 euros e eles recebem 30, o resto vai tudo para o Estado. Isto é um problema muito grande porque dizem “paguem por fora que eu trabalho”, mas não me vou meter em ilegalidades.

Portugal 2043: “Gostaria que o Estado não levasse tanto dinheiro”

Qual é a sua visão para o país daqui a 20 anos?
FF – Que os trabalhadores fossem compensados e que o Estado não levasse tanto dinheiro. Hoje a nossa dificuldade é termos trabalhadores dispostos a trabalhar totalmente.
A sociedade está toda desestruturada. A vida tem de ser mais consistente, tem de ser baseada em princípios. O passado não pode ser pura e simplesmente esquecido e acho que hoje toda a gente tem pressa em esquecer o passado.

A fiscalidade é, enquanto empresário, aquilo que mais o preocupa?
FF – Os impostos são um entrave. Se fossem bem gastos eram uma maravilha, mas são mal gastos.
Agora com estas novas tecnologias, a sustentação da sociedade, nos modos em que a temos é um problema grave. Hoje existem tecnologias modernas, mas quem é que vai comprar estas tecnologias? São aqueles mais desonestos que têm dinheiro para as comprar. A distância vai aumentar em relação à sociedade civil, àqueles que trabalham, porque são tecnologias caríssimas que não estão ao alcance de toda a gente.

Enquanto empresa do setor privado, que foi superando várias adversidades, quais é que acha que devem ser os desafios do Estado?
FF – Acima de tudo, reformular a formação da juventude. A juventude não pode ser formada como está a ser formada, tem de começar nos bancos do infantário. Não podemos pensar que é depois de serem doutores que os vamos educar. Isto é uma mudança estrutural da própria sociedade.
Há muito tempo que digo que é preciso trabalhar menos horas. Devia-se até trabalhar só 4 horas por dia, mas não era para depois ninguém fazer nada. Qual é o problema da sociedade, hoje?
É não ter o acompanhamento dos mais velhos na formação dos mais novos. Se houvesse este horário de 4 horas por dia, a mulher e o homem podiam trabalhar de manhã na empresa e de tarde ia mpara casa tratar dos pais, dos filhos e dos sogros.
Teríamos uma sociedade muito mais bem formada, mais equilibrada, fechar-se-iam centenas de prisões, dispensar-se-iam centenas de guardas prisionais e ainda arranjaria outras ocupações. Tinhamos uma sociedade muito mais humana e fraterna.

Hoje toda a gente diz que quer tratar dos pais, mas não tem condições, trabalham 8 horas. Portanto, se trabalhassem 4 horas por dia, um de manhã, em casa, a olhar pelos pais, pelos sogros, pelos filhos; da parte de tarde, caberia ao outro. Tínhamos sempre uma cabeça de casal em casa, a olhar pela vida do lar, do afeto, do carinho, da responsabilidade.
Não precisávamos de produzir mais. Nós precisávamos de produzir com valor acrescentado. Não é produtividade, mas valorização do produto. Fala-se muito em produtividade, é um termo dos economistas, mas cheira a escravatura.
Não é produzir, é valorizar. Valorizar é com pensamento, com lentidão, com menos consumo.
Fazer um sapato à mão é muito mais bonito e muito mais prático para a formação humana do que fazê-lo à máquina. A educação e a arte são educadas. Por que é que os antigos pintores pintavam tudo com tintas e as obras ainda hoje são bonitas? Hoje, qualquer indivíduo pinta um quadro.
É esta disfunção entre a realidade e o “flash” que faz a desgraça do mundo.