As políticas públicas dos últimos governos têm conseguido diminuir as desigualdades sentidas pelas mulheres? Em debate, Sandra Ribeiro, presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, e Helena Canhão, diretora da Faculdade de Medicina da Universidade Nova de Lisboa.
Sandra Ribeiro: “Governos veem igualdade de género como emergência”
SR – As políticas públicas são o principal instrumento que os governos têm para tentarem controlar, minorar e, de preferência, eliminar os problemas endémicos e persistentes numa sociedade. E, naturalmente, os da igualdade de género são muito persistentes. Aquilo a que temos assistido, de uma forma bastante consistente, nos governos que se foram sucedendo nos últimos 20-30 anos, é que tem havido a preocupação de colocar as questões da igualdade de género em cima da mesa como uma emergência para ser resolvida.
Ganhou-se uma lógica que não se tinha no passado de que as questões da igualdade de género são importantes para a economia, são importantes para a sociedade de uma forma geral. Não são já vistas como algo da discussão das mulheres, uma coisa do feminismo irritadiço, mas antes como algo que faz sentido em qualquer sociedade que quer ser desenvolvida.
Diria que tem havido uma grande evolução, mas os problemas de fundo ainda se mantêm. Podem ir mudando às vezes a sua fisionomia, mas ainda têm a sua base numa sociedade muito estereotipada na função que se espera que um homem tenha e a função que se espera que uma mulher tenha. Ainda há um tradicionalismo muito forte face ao que é o papel do homem e o papel da mulher e isso tem sido mais difícil de ultrapassar.
Portugal tem legislação que é reconhecida internacionalmente, em todos os fóruns, como uma legislação moderna, atual, que cumpre todos os requisitos dos acordos internacionais, das diretivas e dos elementos comunitários. O problema é a prática; é a diferença entre o Direito legislado e o Direito aplicado. Aqui nós vemos que temos problemas ainda fortes.
Um destes – e creio que o problema de base para tudo o resto – é um desequilíbrio ainda muito grande na partilha das tarefas domésticas e do cuidado entre homens e mulheres que vivem em família numa mesma casa, numa mesma célula familiar. E isso vai espoletar que elas tenham menos disponibilidade para o trabalho.
O nascimento dos filhos é uma mudança aterradora. Na entrada no mercado de trabalho, homens e mulheres conseguem de uma forma geral ter atualmente a mesma oportunidade; mas depois, na manutenção do trabalho e na evolução na carreira, há uma diferença enorme, para que todas as estatísticas apontam. Quando nasce uma criança, as mulheres têm tendência a retraírem-se, porque continuam naturalmente a ser as principais cuidadoras. Os homens aí passam à frente e ganham mais e conseguem subir.
Helena Canhão: “Há muito a fazer nas políticas públicas e na sociedade civil”
HC – Concordo que as políticas públicas são um instrumento fundamental e que têm estado a ser usadas na melhoria das desigualdades, mas precisamos de alterações mais estruturais e que sejam não apenas top-down, mas mais bottom-up. Em Portugal, temos de mobilizar mais a sociedade civil para ajudar os nossos governos, as comissões, etc., a fazerem o seu trabalho, e de fazer um movimento civil também deste ponto de vista. Depois, temos de olhar para as políticas e adaptá-las à situação que vai ocorrendo e à população que vai mudando.
Penso que os nossos jovens, hoje, felizmente, são muito diferentes das pessoas que eram jovens há 30-40 anos. Isso também pelas políticas que vão acontecendo. A forma como olham para estas questões é diferente, mas isso também significa que as escolas têm de ser diferentes, os nossos professores têm de ser diferentes, os nossos educadores, a nossa comunicação social. Há aqui um papel que não pode ser só feito pelas políticas públicas ou pelos governos, mas que deve estender-se a toda a sociedade.
Depois o outro ponto que também considero ser muito importante, é tirar isto apenas de ser um problema das mulheres porque é um problema de toda a sociedade.
Nós temos as mulheres cuidadoras, muito mais do que homens, e que são uma parte da economia que está escondida, que fazem um trabalho que não é remunerado, etc., mas que está a participar e a contribuir para a sociedade. Como é que nós vamos reconhecer isto?
Outro dos pontos tem que ver com as expectativas, o que é que se espera de uma mulher e o que é que se espera de um homem. Há estudos muito interessantes, por exemplo, de crianças de 5-6 anos a jogar futebol, com uma equipa feminina e depois com equipas em que são todos rapazes. Uma das jogadoras magoa-se e vão todas a correr para ver. “Magoaste-te, tens algum problema?”; se for um rapaz que cai, os colegas dizem “levanta-te, não sejas mariquinhas”. Vê-lo logo aquela postura das mulheres, a protegerem, não faz mal chorar; enquanto os rapazes são estimulados entre eles, entre os seus pares, a não dar parte fraca.
Concordo que se tem feito muito do ponto de vista de políticas públicas ao longo dos anos, mas há muito mais a fazer, quer da parte das políticas públicas, quer a mobilizar a sociedade para este contributo.
Sandra Ribeiro: “As mulheres, na generalidade, continuam a ser as principais cuidadoras”
É verdade que tem havido alguma evolução no que toca à igualdade de género, mas ainda há uma série de questões a resolver. Quais é que são os maiores problemas?
Sandra Ribeiro – As mulheres, na generalidade, continuam a ser as principais cuidadoras. Elas ficam mais a tomar conta dos filhos e, um dia mais tarde, quando as crianças já não precisam de tanta ajuda porque já são adolescentes ou porque já são jovens adultos, aí, muitas vezes, é tarde demais. Depois vem toda esta lógica de que as mulheres, em média, ganham menos do que os homens, porque fazem menos trabalho suplementar, porque têm menos trabalhos com isenção de horário, porque quando há uma possibilidade de promoção na carreira, vai-se promover quem apresenta maior disponibilidade para o trabalho.
Também há uma questão que muitos estudos apontam, que é o facto de as mulheres discutirem menos o salário, ligado a uma certa postura que já trazem de que têm de ser mais sossegadinhas ou que não devem tanto reclamar. Isso também é algo que é importante, mas eu diria que não é o fundamental.
Este ano celebramos os 50 anos do 25 de Abril e aconteceu uma revolução dentro da revolução, que foi o acesso à educação das mulheres. Em 1974 havia menos de 10% de mulheres licenciadas em Portugal, hoje existe 60 e tal por cento. É uma diferença brutal, mas essa diferença ainda não fez um efeito de revolução no mercado de trabalho.
Helena Canhão – O facto de nós termos cada vez mais mulheres licenciadas, acho que, com o tempo, acaba por ter algum efeito nas lideranças. Neste momento, à entrada, já temos muitas mulheres e é muito parecido este rácio, homens-mulheres; depois, na progressão isso já não se verifica.
Por exemplo, na Faculdade de Medicina neste momento, temos 70% de raparigas e só 30%, ou 33%, de homens e, portanto, necessariamente, daqui a 10, 20, 30 anos começam as mulheres a liderar os serviços, enquanto agora ainda temos um domínio dos homens.
Também é verdade que às vezes interessa e importa ter a legislação feita a olhar para o homem porque há alguns aspectos em que os homens até são prejudicados. Por exemplo, a legislação da maternidade e da paternidade. O facto de as mulheres, quando têm filhos perderem algumas hipóteses na carreira, porque os empregadores olham e pensam, não vou dar este lugar a uma mulher porque ela está numa idade fértil, há uma probabilidade de ter filhos e, portanto, é melhor escolher um homem. O facto de agora termos licença de paternidade, que é mais longa para os homens, põe o empregador também a pensar que se for um homem, se estiver numa idade em que pode ser pai, também se calhar vai faltar algum tempo ao trabalho.
Lembro-me de que quando os primeiros homens começaram a pedir esta licença, era visto de uma forma muito estranha: “Tem um filho e agora quer ficar em casa? Mas é ele que fica?”. E isto agora começa a ser uma prática generalizada, que, indiretamente, beneficia também as mulheres. . É um dos exemplos que nós temos na nossa legislação de uma política pública na área da igualdade de género que funcionou bem em Portugal.
Quando olhamos para a legislação, é preciso também olhar para a legislação do homem, que, às vezes, até é prejudicado. Por exemplo, num divórcio, antes a mulher tinha habitualmente a guarda, agora cada vez temos mais guarda partilhada, portanto, também é importante ver que o homem nem sempre era beneficiado nesta situação.
Helena Canhão: “Ainda há um domínio dos homens a liderar serviços médicos”
Qual é a vossa opinião em relação às quotas de género? Há quem continue a concordar, dizendo que é um mal necessário, e quem discorde totalmente. SR – As quotas são outro exemplo de política pública que foi muito pensada, que levou a muita discussão e teve apoios e oposições de homens e de mulheres.
Creio que foi feita sempre uma discussão que me pareceu logo enviesada, inquinada, um bocadinho tóxica, que foi a questão do mérito. Levantar a questão de que as quotas vão fazer com que mulheres que não têm condições para estar a exercer determinados cargos, agora vão estar só porque são mulheres, enviesa completamente a discussão.
Já passaram muitos anos desde as quotas, quer nos partidos políticos, para o acesso aos cargos políticos, quer também nas empresas, cotadas em bolsa e nas empresas públicas, e aquilo que vemos é que nada piorou. Não houve um descalabro na gestão, nem pouco mais ou menos. Aquilo que passou a acontecer foi procurar mulheres para poderem ir para cargos em que antes não se ia à procura delas. As decisões, muitas vezes, de quem é que ia ser CEO, era muito no inner circle. Um inner circle de homens. Aquilo que as quotas obrigam é que temos de ir à procura fora daquele inner circle. E quando fazemos isso, até o mérito ganha, porque se vai à procura, realmente, dos melhores e das melhores.
Até no tema da governance, existe cada vez mais essa obrigatoriedade de ter as mulheres, seja nos boards, seja como administrador não executivo…
SR ─ As grandes empresas hoje fazem gala e mostram isso, até para se identificarem como bom sítio para trabalhar e como uma empresa que está preocupada com a sociedade em geral, e até para agradar à clientela. A diversidade e inclusão, onde as questões de igualdade entre homens e mulheres estão lá, mas também outras, como as questões da orientação sexual, da identidade de género, étnicas, rácicas, de tudo isso.
HC ─ Se nós pegarmos no mérito, obviamente que não concordo. Quando é enviesado nesse sentido, e pensar que alguém, só por ser mulher, ou só por ter mais de 50 anos, ou ter menos de 20, deve estar num lugar, nunca pode ser esse o critério.
Importa chamar a atenção que deve haver esta diversidade. A diversidade é fundamental porque representa a população e quando temos uma visão, e aqui não é só entre homem e mulher, tem que ver com as várias idades, as várias proveniências, mesmo num país como o nosso, que é muito heterogéneo. A vivência das pessoas que estão no meio rural é diferente da do meio urbano, pelo que devemos ser o mais representativos possível, porque se formos assim, respondemos muito melhor às necessidades da população que servimos.
– As quotas são um mal necessário?
HC ─ Cada vez deixa de ser mais necessário. Acho que o facto de a prática começar a instalar-se, deixa de fazer muitas vezes sentido, mas infelizmente ainda há muitos locais que mesmo com quotas, essa prática não está a ser levada a cabo. E, portanto, o que defendo é o mérito, mas também o ter uma visão abrangente numa organização para ela ser representativa. Se escolhermos uma quota só por um número para cumprir e depois as pessoas nem sequer terem voz, isso não concordo, obviamente.
SR ─ Isto é uma medida positiva temporária, assim que se entenda que em autorregulação há já um equilíbrio do sexo menos representado, normalmente das mulheres, em cargos de direção, deixa de fazer sentido existirem cotas, naturalmente.
Helena Canhão: “Cada vez mais deixam de ser necessárias as quotas. O que defendo é o mérito”
– Coloca-se, muitas vezes, o tema de uma organização ter imensas mulheres, no meio académico, nas organizações em geral, nas redações, mas não quer dizer necessariamente que depois as mulheres consigam ser a diretora ou a presidente dessa organização. Por que é que isso ainda acontece?
SR – Uma das principais razões tem que ver com todo o envolvimento tradicional, familiar e de cuidado, que de facto puxa muito a mulher para ficar mais a tomar conta das suas coisas. Lá está, se calhar não têm tempo para ir àquele jantar, onde se ia decidir quem é que ia ser chefe a seguir; se calhar não vai conseguir ficar muitas vezes a fazer trabalho suplementar, não vai poder estar sempre a chegar-se à frente a dizer “eu faço, eu posso, eu consigo”. Acho que essa é uma das circunstâncias que, de facto, faz com que as mulheres, por muito talento que tenham, muitas vezes têm mais dificuldades.
Há muitas mulheres que cada vez mais começam a atrasar o momento em que têm os seus primeiros filhos, um bocadinho a tentar ficar estável na carreira para finalmente poder dedicar-se a ser mãe. E isto é também muito pesado, ser obrigada a decidir “vou dar prevalência ao meu trabalho ou vou dar prevalência à minha família?”.
É um peso que, de uma forma geral, os homens não sentem. Depois também há uma falta de democracia que é quem tem mais capacidade pode comprar a conciliação entre a vida familiar e a vida profissional. Por isso, às vezes também vemos que há algumas mulheres que naturalmente, mesmo com muita dificuldade e com muitos filhos, conseguem, se tiverem capacidade para ter alguém que as ajude, que fique em casa a tomar conta dos seus filhos, que os vá buscar à escola, progredir nessa carreira.
Os homens, de uma forma geral, não têm de ter essa preocupação, porque muitas vezes estavam habituados a ter alguém lá em casa que ficava a tomar conta.
A questão da família, a questão do cuidado, e então em gerações como a nossa, que estamos a ficar absolutamente ensanduichados entre as crianças ainda pequenas, porque já as começámos a ter aos trinta e poucos anos, e os nossos pais que já começam a ser idosos, eu acho que isto é um problema e que a economia do cuidado tem, de facto, que ser revisitada e reinventada.
Creio que, com a inversão que está a acontecer também em quem está a ser mais licenciado, em quem vai estar com mais condições no futuro para chefiar, provavelmente vão ser mais mulheres do que homens.
Algo vai ter de acontecer para que nós possamos ter uma sociedade equilibrada. Porque também termos as mulheres todas em cargos de direcção ou as mulheres todas licenciadas e os homens muito menos licenciados ou muito menos em cargos de direcção, não é positivo para a sociedade. Não é isso que a igualdade quer, não é isso que o feminismo quer. O que se quer é um equilíbrio.
Antes de vir para este debate, estive na apresentação de trabalhos com escolas. Estávamos a falar sobre segregação profissional e sobre quem é que quer ir para que áreas. O que se via era a maior parte dos rapazes quererem as técnico-profissionais de gestão desportiva e mecânica e as raparigas a querer ser médicas, advogadas, arquitetas. Isto não é uma coisa positiva.
Algo tem de acontecer na nossa sociedade. Acho que quem tem poder para fazer diferente, os novos governos, o novo governo que está para chegar, este assunto tem de ser encarado porque pode ser um grande problema a muito curto e médio prazo.
Sandra Ribeiro: “Há cada vez mais mulheres que adiam ter filhos por causa da carreira”
HC – Este problema do cuidado, da forma como a nossa sociedade tende a evoluir, com pessoas cada vez mais idosas que vão ficar dependentes e a forma como as nossas crianças também estão a ser educadas, estão a olhar para o futuro… nós vamos ter aqui um problema na sociedade e no futuro, e isto é em cinco, dez anos, com a inteligência artificial, a digitalização, tudo isto está a mudar.
Temos de conseguir educar as nossas crianças pensando no futuro, no amanhã. É curioso ver que os rapazes são muito mais manuais e muito mais virados para o componente profissional. As mulheres com estas profissões que requerem uma maturidade que as raparigas continuam a ter mais cedo, estou a falar de uma forma genérica, obviamente, e não de casos individuais. Poderá começar a haver esta diferença e nós já começámos a ver no ensino superior, não tanto nas engenharias, talvez, mas em quase todos os outros cursos, com as mulheres a terem cursos superiores e os rapazes menos.
Como é que a nossa sociedade vai ficar organizada, mas ao mesmo tempo a ter um suporte económico e social para as crianças, para os idosos, e libertar as famílias e as mulheres deste peso tão grande que está a ser o cuidado das pessoas mais velhas e das crianças.
Nós vemos que cada vez custa mais, e aqui as políticas públicas são importantíssimas: a disponibilidade, por exemplo, das creches, a disponibilidade do apoio à criança, mas, sobretudo, a disponibilidade de apoio às pessoas mais velhas e como é que quem trabalha consegue dar este apoio aos idosos, e ao mesmo tempo temos também os idosos a darem apoio a idosos. Como é que nós vamos desenhar a nossa sociedade para dar este apoio?
Olhamos para outros países, como por exemplo a Dinamarca, em que a comunidade é que sente que tem de dar este apoio, o município, a junta de freguesia, e não a família, porque a família, claro que dá apoio emocional, mas não o apoio do cuidado direto. E isto é um desafio também para Portugal, que traz políticas públicas.
– Deveria haver um Ministério da Igualdade?
SR ─ Claro, com certeza, deveria haver um Ministério da Igualdade. Até hoje só tivemos uma ministra da Igualdade, que foi a Maria de Belém, há muitos anos, depois temos tido secretárias de Estado da Igualdade, mas não é a mesma coisa.
Ter um Ministério da Igualdade faria todo o sentido e um Ministério da Igualdade que fosse amplo, com interseccionalidade e multidiscriminação. Não é só para a igualdade entre homens e mulheres, mas para toda a diversidade, e naturalmente englobar as questões étnicas, rácicas, religiosas, de idadismo, que é absolutamente importante, da deficiência, da orientação sexual e identidade de género. Portanto, um grande Ministério.
Sandra Ribeiro: “Deveria haver um Ministério da Igualdade”
HC – Depende do número de Ministérios que vamos ter, mas nós temos de investir na igualdade e no combate às desigualdades, a todas as desigualdades. Temos estado aqui a falar, no Dia da Mulher, na desigualdade de género, mas a pobreza, o acesso à educação e o acesso a ter uma vida digna é fundamental. E nós vemos, neste momento, muitas pessoas com dificuldades económicas e dificuldade de acesso à dignidade humana e às condições mínimas na saúde, na educação.
Isso é preciso ser combatido com políticas públicas, com ou sem Ministério, mas temos de olhar de uma forma muito preocupada para estas questões.