Uma cimeira ibérica para repor a alta velocidade nos carris certos?

Se optarmos pela bitola ibérica ficaremos isolados da rede europeia de AVF, dificultando a interligação com os mais de 3 mil km da rede espanhola.

A Cimeira Luso-Espanhola é talvez a última oportunidade de reparar o erro cometido pelo anterior governo relativamente às ligações ferroviárias com Espanha. Com o resgate financeiro a que o país foi sujeito a partir de 2011, o então governo (PSD/CDS) foi obrigado a adiar os grandes investimentos públicos anteriormente decididos, nomeadamente os relativos às linhas de alta velocidade ferroviária (AVF) entre Lisboa e Madrid e entre Porto, Lisboa e Vigo.

Todavia, é importante recordar que a decisão tomada foi a de suspender os projetos em causa (num deles implicando uma indemnização de centenas de milhões de euros ao consórcio a quem tinha sido adjudicada a obra) e nunca o de pôr em causa a sua necessidade e características técnicas.

Aliás, seria estranho que um governo do mesmo partido que assinou os acordos da 19ª Cimeira Luso-Espanhola, realizada na Figueira da Foz em 2003, onde se acordaram as quatro ligações ferroviárias de alta velocidade (três a concretizar até 2015!) viesse pôr em causa o que fora decidido ao mais alto nível entre os dois governos.

Convém ainda relembrar que o projeto de uma rede de AVF percorreu inúmeros governos, apenas variando o número e o pormenor do traçado das novas linhas, além das prioridades a considerar. No entanto, ao longo de 40 anos, houve uma característica que se manteve constante neste projeto: a construção das linhas (nomeadamente as destinadas ao serviço de passageiros) seria em bitola UIC (europeia), mais estreita que a da rede ferroviária principal existente no país.

Este raro consenso nacional viria a ser interrompido quando, sem justificação técnica plausível, o governo em funções em 2016 decidiu optar por manter a bitola ibérica nas novas linhas a construir. Uma tal inversão política foi justificada com base em dois argumentos, qualquer deles carecendo de fundamentação técnica aceitável.

Por um lado, defendeu-se que essa seria a forma de todas as capitais de distrito – e não apenas as que seriam servidas diretamente pelas novas linhas – poderem vir a beneficiar da redução dos tempos de percurso proporcionada pela AVF. Por outro lado, e mais surpreendentemente, aquando de uma visita dos responsáveis governamentais às obras em curso na linha Évora/Badajoz, afirmava-se que bastaria “desapertar” os carris de um lado e “apertá-los” no outro lado das travessas de dupla fixação, para que se mudasse da bitola ibérica para a europeia.

No que se refere ao primeiro argumento, ninguém soube explicar como, na prática, se processaria a suposta redução de tempos de viagem. Seriam os novos comboios (que custam na ordem dos 35 milhões de euros) a fazerem as ligações às ditas capitais de distrito, com populações entre os 50 e os 100 mil habitantes? Ou, mais realisticamente, teria de haver um transbordo nas estações da linha de AVF donde partem as atuais linhas que servem essas cidades? Mas, neste caso, para quê afetar comboios de tão elevado custo para servir populações tão reduzidas? A haver transbordo, porque não utilizar os comboios usuais para esse serviço? Ninguém soube explicar.

Quanto ao segundo argumento, qualquer técnico com conhecimento do sistema ferroviário, sabe que não se pode mudar de bitola sem parar o serviço por muito tempo, ou, em alternativa, construir linhas paralelas de recurso enquanto se processa à mudança de bitola. Neste caso, qual o custo de tal opção? Além de que, como não é verosímil que se construa uma linha paralela em toda a extensão da que se pretende mudar, haveria sempre que recorrer a comboios de eixos variáveis para que o serviço não sofresse interrupções.

Nenhuma das justificações tem suporte técnico. A razão para uma tão radical mudança de opção terá mais a ver com o fracasso da renovação da Linha Lisboa/Porto que, ao fim de 30 anos de obras, está longe de estar concluída, com todos os inconvenientes conhecidos: atrasos frequentes, tempos de percurso iguais aos do século passado e um custo que já teria permitido construir uma nova linha.

A forma que os responsáveis por este desastre encontraram para ultrapassar a situação foi a de construírem uma linha paralela, batizada de “AVF”, mas mantendo a bitola ibérica para poderem desviar o tráfego da Linha do Norte e concluírem mais rapidamente as obras de renovação.

Só que esta “habilidade” tem custos enormes, tanto financeiros como funcionais e estratégicos. Desde logo porque, ao não serem respeitadas as orientações europeias de interoperabilidade das linhas transeuropeias de AVF, o financiamento europeu fica comprometido.

Por outro lado, ao ser obrigatória a compra de comboios de eixos variáveis para a ligação com Madrid, ficamos dependentes de apenas dois fornecedores espanhóis deste tipo de comboios e não nos podemos associar a compras de maior vulto com outros países, beneficiando desse modo de menores preços, fator decisivo para quem pretende comprar apenas umas duas dezenas de comboios.

Do ponto de vista funcional e estratégico, ficaremos isolados da restante rede europeia de AVF, dificultando a interligação com os mais de 3 mil km da rede espanhola.

Se em relação à ligação Lisboa/Porto é compreensível a dificuldade em alterar, no curto prazo, a decisão do governo anterior (foi já adjudicado o primeiro troço e o concurso para a construção do segundo está em andamento) ainda que se tenha feito isso na ligação Madrid/Sevilha, já na ligação a Madrid nada justifica que a nova linha não seja construída em bitola europeia. Esperemos que o bom senso tenha prevalecido nesta Cimeira Luso-Espanhola.

Presidente da ADFERSIT