André Azevedo Alves: “Quem está mais em crise são os partidos à esquerda do PS”

Professor e investigador em Ciência Política analisa o que pode ser uma mudança de ciclo político, a possibilidade de Portugal “estar mais à direita” e a evolução do sistema partidário — e do eleitorado — no país

Com as eleições europeias concluímos uma sequência de cinco atos eleitorais. Parece-lhe que marcam o fim de um ciclo?
André Azevedo Alves — Ainda é cedo para ter certeza. Acho que terão marcado o fim de um ciclo se, apesar da fragilidade e condições propensas à instabilidade, o Governo conseguir manter-se em funções. Nesse aspeto, o próximo Orçamento do Estado (OE) será decisivo.

Não é certo, mas altamente provável, que o Governo consiga ficar em funções por um período mais alargado de tempo se o OE passar. Desde logo porque não tem outro orçamento no imediato, porque a própria aprovação vai também gerar melhores condições para isso e porque há um conjunto de prazos constitucionais que começam a dificultar um cenário alternativo.

Por outro lado, se o OE não passar, acho provável que tenhamos uma sexta eleição num curto prazo. Portanto, estaríamos ainda a meio deste ciclo de alguma indefinição e de atos eleitorais sucessivos. Caso seja aprovado, acho bastante provável que depois haja um período com alguma estabilidade — não necessariamente até ao fim da legislatura.

Até ao momento, os sinais que temos não permitem a arriscar com muita segurança num sentido ou noutro. O Governo conseguiu entrar em funções, tem conseguido cumprir alguns dos seus objetivos, mas está permanentemente sobre ameaça de uma nova crise. Aliás, a governação tem-se orientado muito por esse cenário: na questão dos professores, dos polícias, nota-se uma certa urgência de apresentar resultados para resolver problemas que vinham de trás e conseguir partir com uma situação mais favorável para eventuais eleições antecipadas.

À medida que o tempo passa, aumenta a probabilidade de o Governo durar mais. Por exemplo, toda a gente achou que o primeiro governo da geringonça que ia durar pouco tempo; acabou por não ser assim e provavelmente as baixas expectativas ajudaram. Curiosamente, com a maioria absoluta do PS foi o contrário. O entendimento era que com maioria iria certamente correr bem, mas do ponto de vista do funcionamento interno, da sucessão de casos e casinhos, uma crise permanente, foi um desastre.

Atualmente, não há obviamente um paralelo com a geringonça porque não há uma base maioritária parlamentar de apoio. Aí a questão era sobre a estabilidade e permanência dessa base e se não iria ruir a qualquer momento. Agora existe uma situação em que já se percebeu que a última coisa que quer o PS quer o Chega querem é ser percepcionados como responsáveis por novas eleições de forma injustificada, pela instabilidade política e ingovernabilidade. Acho que neste momento se gerou, ou está a gerar, uma espécie de equilíbrio instável que vai permitindo ao Governo prosseguir. Mas para o OE acho que está tudo em aberto.

No rescaldo das eleições, falou-se muito da “tripartidarização do regime”. Os partidos mais pequenos já não são atores relevantes?
AAA — Na atual configuração parlamentar isso é objetivo. Salvo conjugações muito excepcionais de abstenções de AD, PS ou Chega que tornem os votos dos partidos mais pequenos relevantes. Só é possível aprovar o que quer que seja no Parlamento com dois desses três: é aritmético. Aliás, uma das apostas pré-eleitorais da AD, consciente que seria pouco provável uma maioria absoluta, era a esperança de poder formar uma maioria que não incluísse o Chega.

Isso não só não aconteceu como ficou muito longe de acontecer, o que também é relevante. Ou seja, apesar de tudo, é bastante diferente a AD e IL estarem a umas dezenas de deputados ou estarem a dois ou três deputados de ter maioria: aí, em situações pontuais ou de divergências noutros partidos, etc, podiam alterar a situação. Neste cenário, há claramente três partidos “que contam” no que toca a votações.

No caso do OE as contas são simples de fazer: ou é viabilizado pelo PS ou é viabilizado pelo Chega – ou pelos dois. Não há nada que a IL, o Livre, o PCP, o Bloco de Esquerda ou o PAN possam fazer que o vá alterar, mesmo supondo que poderiam viabilizá-lo em troca de certas concessões. Nesse sentido aritmético, temos de facto uma situação tripartida.

Um aspeto curioso do resultado das últimas legislativas é que o PS teve um resultado relativamente típico, olhando para as décadas de democracia, do que acontece quando um partido que está no governo é derrotado: nos 20 e tal por cento, um bocadinho abaixo dos 30%. O que foi atípico foi o partido vencedor ter um resultado também nesse intervalo. A novidade em termos de dificuldade de governação é que o partido alternativo não tem um resultado claramente superior ao outro. Isso gera a tal triangulação: o Governo, para aprovar o OE ou para fazer passar legislação no Parlamento está dependente ora do PS, ora do Chega.

O sistema deixou de ser essencialmente centrado em dois partidos principais e passou para três?
AAA — Ainda é cedo para dizer. Vimos, por exemplo, que o Chega recuou muito substancialmente nas europeias, sendo que eram umas eleições especialmente favoráveis para partidos como o Chega, como se verificou noutros países europeus e em partidos da sua família política.

A expectativa seria que, em princípio, o partido teria condições para subir face ao que teve nas legislativas; não só não subiu, como o seu peso em termos percentuais reduziu cerca de metade. Em termos de votos a perda foi ainda maior, porque a participação eleitoral nas europeias foi menor.

O “centrão”, portanto, mantém-se irredutível?
AAA — Se isto será uma mudança estrutural do sistema partidário, depende de o Chega se consolidar pelo menos acima dos 15%. Nesse cenário dificilmente o PSD consegue voltar a ter maiorias absolutas e o PS teria que quase desaparecer.

Seria uma reconfiguração ainda mais drástica do sistema partidário em que o PSD passava a ser o partido de centro-esquerda e o Chega o bloco de direita, o que não me parece muito provável no curto-médio prazo. É mais provável que o Chega consiga essa posição à custa de PSD e CDS, do espaço tradicional do centro-direita.

Nos termos da aritmética parlamentar actual, há claramente uma situação tripartida. A matemática não permite outra outra leitura. Por isso é que quando pensamos no OE, estamos a pensar no que o PS e Chega vão fazer; ninguém está a discutir o que o Livre ou a IL vão fazer.

Se o Chega regredir substancialmente nas próximas legislativas, acho que é possível que se mantenha a situação de haver dois principais partidos e este ficar ali num segundo plano, como aconteceu nas europeias. Aí estaríamos a falar de uma maior fragmentação do centro-direita e da direita: não de haver três partidos grandes, mas de o PSD perder espaço e este ser distribuído.

Se nas próximas legislativas o Chega mantiver uma votação similar ou reforçar, aí acho que podemos começar a falar numa alteração mais estrutural do sistema partidário. Parece-me relativamente evidente que o grande objetivo estratégico de André Ventura é substituir o PSD. Isso também vai influenciar como o Chega se vai posicionar face ao OE, ao tentar aferir a probabilidade de ser beneficiado ou penalizado pela decisão em qualquer um dos sentidos.

Esta equação é tão difícil para o Chega como para o PSD, até porque dentro do eleitorado do Chega há motivações para o voto bastante diferentes.

Estas alterações ao nível parlamentar refletem uma alteração ao nível do eleitorado? Os portugueses estão mais à direita?
AAA — Acho que há dois fenómenos convergentes: muito provavelmente havia um segmento eleitoral significativo à direita que não se sentia representado, o que explica que o Chega tenha conseguido recolher votos no espaço PSD-CDS (o que não implica uma transferência direta de votos), mas também há uma mobilização de muito eleitorado abstencionista e do eleitorado jovem, no segmento dos 18 aos 24 anos, que vota pela primeira vez.

No primeiro, parece-me que a liderança de Rui Rio foi determinante para os segmentos eleitorais, embora diferentes, da IL e do Chega. Sem ela, talvez fosse difícil para os dois partidos conseguir representação parlamentar. Em Portugal, conseguir alcançar este patamar é particularmente difícil quando comparamos com países como a Itália ou a França. Mas não é só Rui Rio: havia um segmento que não se sentia representado pelo centro-direita tradicional e esse sentimento foi amplificado pelo então líder do PSD.

Um segundo factor poderá ser a mudança do eleitorado. Sabemos que depois da transição para a democracia há uma rejeição muito forte de tudo o que seja associado ao regime anterior. Isso acontece à esquerda ou à direita: na Europa de Leste com os partidos associados ao comunismo; em Portugal, não só no período revolucionário mas nos anos seguintes, ninguém queria ser de direita. Não é por acaso que o CDS é “centro” ou que o PSD é social-democrata.

Chegamos a 2019 ou 2024 e para grande parte da população esta já não é uma memória pessoal mas um evento histórico. Uma parte crescente do eleitorado nasceu depois de 1974 ou não tem memória do PREC, esse estigma de ser de direita é algo mais distante. Há uma normalização: pode-se tanto ser de esquerda ou de direita.

A entrada destes novos partidos, seja à esquerda ou à direita, é então um sinal de maturidade da democracia portuguesa?
AAA — Pode ser visto como isso. Uma das coisas que era peculiar no sistema partidário português era não termos nenhum partido no espaço da direita radical, quando na larga maioria dos países esses partidos existiam.

Curiosamente, também não tínhamos nenhum partido na família liberal. Olhando para a Europa, com maior ou menor peso, estes existem. Acho que isso tem muito que ver com com as características específicas da transição para a democracia e é próprio das características iniciais do regime que se foram atenuando ao longo do tempo.

Sabemos que as pessoas não ligam muito à política internacional e ao que se passa nos outros países, mas ao longo do tempo sofremos dos seus efeitos. André Ventura percebeu isso: se há partidos desta natureza nos outros países todos, se Meloni ganha eleições, se Orbán é primeiro-ministro, se há um conjunto de partidos que, mesmo não governando, têm um peso substancial, então havia aqui uma oportunidade política para explorar. E Ventura reúne um conjunto de características pessoais, qualidades retóricas, comunicacionais, etc, que me levam a arriscar sugerir que o que carecia de investigação era só existir o PSD e o CDS.

O mais intrigante, para mim, não é ter um partido liberal e um partido na direita radical. É como é que Portugal, durante tanto tempo, nunca os teve.

Provavelmente porque o PSD foi durante muito tempo um partido catch-all, que depois do 25 de Abril, em particular durante o cavaquismo, secou completamente praticamente tudo à sua volta. A partir do momento em que há alternativa, torna-se mais fácil de mobilizar o eleitorado que até então votava no PSD por “escassez” na oferta.

Em relação à “viragem à direita” do eleitorado, particularmente o jovem, acho que nos últimos 15 a 20 anos se gerou uma espécie de consenso “politicamente correcto”, mediático, educacional, etc, de rejeição de um conjunto de ideias à direita que está a ter precisamente o efeito contrário. A inclinação natural de muitos jovens é de rebeldia, de ser contra o sistema, de não seguir o que lhes é dito. Nos últimos anos, esse consenso mediático-educacional é muito determinado pela esquerda. São os fenómenos como a cultura woke, de cancelamento, etc.

Pode ser esta barragem de gente mais velha em posições de poder a dizer “vocês não podem pensar ou dizer isto”, “isto é inaceitável”, etc., que tem o efeito de colocar este eleitorado a revoltar-se. Esta é talvez uma das principais hipóteses explicativas para perceber a fortíssima popularidade no segmento jovem de André Ventura, Rita Matias, entre outros.

Em larga medida, o próprio PSD e o CDS subscreveram grande parte desta agenda e desta mensagem, ou pelo menos não se opuseram a ela de forma mais explícita e visível.

Que mudanças nota à esquerda?
AAA — Se a direita se expande, isso naturalmente tem um efeito contrário à esquerda: o total não é elástico.

Em 2022, alertei num artigo na conconcorrência (no Observador) para o crescimento da direita apesar da maioria absoluta de Costa. Face às legislativas anteriores, a esquerda perdeu e a direita no seu todo cresceu. Ou seja: essa maioria não foi conseguida recuperando espaço ao centro, mas secando a esquerda radical e a extrema-esquerda. Esse foi o grande sucesso de António Costa.

Também tem a haver com ser um partido com uma implantação nacional e uma máquina forte. Sabemos que quando há partidos que estão no poder durante muito tempo e cujas estruturas têm uma grande proximidade com as instituições do Estado e do poder local, se acaba por gerar uma sustentação mais forte.

Vamos ver o que é que vai acontecer sem António Costa, porque acho que tem nisto um grande mérito pessoal. Não é evidente que com uma liderança na linha de Pedro Nuno Santos tivesse que ser assim.

Em Portugal, estando a esquerda nos últimos anos numa posição de alguma crise e perda face à direita como um todo, quem está mais em crise são os partidos à esquerda do PS. Obviamente que a posição do PS não é favorável; para um partido habituado a estar no poder, estar na oposição não é fácil. Mas repito: em perspetiva para outros países europeus, o PS está numa situação muito favorável. Quer dizer, saiu do poder empatando com o partido no Governo e ganhou as primeiras eleições a seguir às legislativas!

Nalguns países, como a França ou a Alemanha, a extrema-esquerda capturou espaço aos partidos de centro-esquerda tradicionais. António Costa conseguiu, talvez seja tenha sido a grande virtude da geringonça para o PS, esvaziar a extrema-radical e a extrema-esquerda – o Bloco de Esquerda, em particular.

Comparativamente, a crise à esquerda é mais no PCP e no BE. O Livre, que tem estado crescimento, é uma exceção mas veremos até onde irá. Mas note que nas europeias, que eram eleições favoráveis a partidos como o Livre, não consegue eleger. Aqui, a situação é um pouco como a do Chega, mesmo tendo aumentado um bocadinho. Já o Bloco e o PCP ficaram no limiar da eleição. Devem ter suspirado de alívio!

A propósito das europeias, o professor escreveu um artigo sobre o efeito dos cabeças de lista na votação. A escolha importa?
AAA — Esquecendo agora as circunstâncias concretas destes candidatos, penso que em geral os cabeças de lista importam relativamente pouco. A maior parte das pessoas tem fidelidade partidária, vota sempre ou quase sempre no mesmo partido. Além disso, tende a votar motivado por outros fatores: se quer protestar, se quer apoiar o governo, se quer ser contra o governo.

Se estiver muito insatisfeito com o governo e for votar no principal partido da oposição, não é particularmente relevante para a maior parte dos eleitores o cabeça de lista – e o mesmo se a motivação do voto for apoiar o governo. A maior parte do eleitorado não presta muita atenção a isso, e uma parte substancial não sabe ou tem uma vaga impressão sobre quem é o cabeça de lista em que está a votar.

Sendo essa a situação geral, pode haver circunstância específicas em que tem algum efeito positivo ou negativo. Nestas eleições, não dou uma grande novidade ao dizer que houve um caso de efeito negativo: o Chega. Aliás, é o efeito mais claro das eleições europeias, porque não só não concretizou o potencial de crescimento face às legislativas como perdeu em termos percentuais para quase metade. Não foi só o cabeça de lista; mas claramente não ajudou – o Chega até beneficiou, paradoxalmente, de muitos eleitores não prestarem atenção a quem é o cabeça de lista. Os “danos” foram contidos porque o efeito em geral da escolha de candidato não é muito grande.

Pela positiva, mas numa escala completamente diferente, temos a IL. Discordo um bocadinho da análise dominante de atribuir o resultado da IL em larga medida a João Cotrim de Figueiredo. Teve um efeito positivo, até por ser um partido mais de nicho e mais concentrado. Como é bom em campanha e bom a comunicar, em contraste com o cabeça de lista do Chega, não tanto com o da AD, o efeito foi claramente positivo.

Acho que pesaram mais fatores da natureza das eleições. Nas legislativas a IL foi muitíssimo penalizada pelo voto útil, porque para muito do seu eleitorado o objetivo era que o PS não ganhasse as eleições. Ou seja, Rui Rocha enfrentou uma pressão do voto útil que Cotrim de Figueiredo não enfrentou. Esquecer isso ao analisar os dois resultados é um erro grave. Portanto, a subida dos liberais não se deve ao cabeça de lista, mas este teve um efeito positivo.

À esquerda também houve um situação interessante. O Bloco de Esquerda apresentou uma candidata muito forte. Catarina Martins tem altos níveis de reconhecimento, bastante superiores a Bugalho, por exemplo, e quase toda a gente lhe reconhece uma boa capacidade comunicacional, bom desempenho nos debates, etc. Mas no Bloco de Esquerda não se pode dizer que tenha tido um efeito. Como cabeça de lista fez uma aposta que dificilmente teria sido mais forte, mas o resultado acabou por ser uma votação pouco superior à do Livre, que apresentou um cabeça de lista sem qualquer experiência política e de debates.