O Portugal amanhã, na Europa hoje

As europeias serão um teste, um desafio, uma sinecura eleitoral e uma última oportunidade

No estatuto editorial deste projeto cabem conceitos que são, necessariamente, decisivos para quem nele publica. Trata-se de debater assuntos da economia e das estruturas que a determinam, em Portugal, com independência dos poderes de qualquer natureza.

Não poderia para mim calhar em melhor momento a reflexão que me foi solicitada, considerando o ato eleitoral de 9 de junho próximo futuro.
Estas eleições europeias são ao mesmo tempo um teste, um desafio, uma sinecura eleitoral e uma última oportunidade.

Teste, porque se trata de aferir da qualidade, capacidade de empatia e conversação com o país dos propostos à eleição pelos 17 partidos e coligações concorrentes.

Um desafio, porque os temas europeus, mesmo em tempo de eleições, não são conhecidos por atraírem muitos votantes. Este ano, apesar dos assuntos em debate, do voto em mobilidade e do sentimento generalizado da importância da União, o receio da abstenção permanece. Sem esquecer a ameaça (ou oportunidade, depende do ponto de vista) de uma extrema-direita populista, nacionalista ou eurocética, como lhe quiserem chamar.

Por outro lado, alguns consideram estas eleições uma sinecura, pois, considerando justamente a tradicional escassa participação, o que (dizem) verdadeiramente motiva os europeus são os assuntos nacionais.

Mas são uma oportunidade, para muitos, como para mim, talvez a derradeira, para alicerçar um projeto decisivo para um continente em declínio demográfico e cujo bem-estar está ameaçado pelo crescimento de concorrentes poderosos, em tempos de instabilidade e muitas ameaças.

A campanha deste ano decorreu, já lá vão largos meses, sob a perspetiva palpável, senão da vitória, de um crescimento imparável dos partidos chamados de extrema direita. São as sondagens que o dizem:
Num Parlamento Europeu (“PE”) com 720 deputados, a sondagem das sondagens (poll of polls) publicada no site eletrónico Politico (relativa a 31 de maio), previa para os dois grupos políticos mais à direita do plenário (Conservadores e Reformistas, “CRE” e Identidade e Democracia, “I&D”) um total conjunto de 144 membros, mais do que o grupo dos socialistas e democratas (142). E falta ainda decidir em que grupo ficarão vários potenciais eleitos de diferentes países, bem como o que sucederá aos escolhidos na Alemanha pelo AfD, expulso do I&D.

De momento, o Partido Popular Europeu, de centro-direita, parece poder vir a manter-se como partido com maior número de deputados – 170 na sondagem das sondagens. Isto permitir-lhe-ia, com socialistas e renovadores (os liberais, Renew, com 76 previstos e em queda constante), somar 388 deputados, ou seja, mais do que a maioria absoluta de 361 deputados no total de 720 eleitos. Sem isso, a governação da instituição pode tornar-se imprevisível. Mas a margem é mínima e pode ainda diminuir. Margem mínima, risco máximo.

Que consequências pode ter uma presença massiva de deputados radicais (chamemos-lhes agora assim) no Parlamento Europeu? Não vale a pena poupar nas palavras: esse seria um parlamento em que a própria integração europeia como a conhecemos poderia estar em causa. O “soberanismo” generalizado desses partidos, o ideário político favorável à predominância dos Estados-nação – uma “Europa das Nações”, como a chamam alguns (incluindo o Chega), seja isso o que for –, a predominar, tornaria problemática a gestão em comum das múltiplas áreas de política em que a União é competente.

Nesse cenário estariam em causa, sob pena de incoerência, o próprio primado do direito da União Europeia, o método comunitário das decisões por maioria, os objetivos comuns, até o mercado interno e as quatro liberdades. E fora de questão políticas comuns de imigração e asilo, defesa comum, política externa.

Em causa também, provavelmente, a liberdade de circulação de pessoas, Schengen e o Erasmus, o roaming europeu e políticas partilhadas em domínios relativos à competitividade da economia europeia. Para simplificar e correndo o risco do “cliché”, em causa estaria a Europa como a conhecemos.

Há em tudo isto, nesta previsão (para mim) sombria, um pequeno mas importante óbice: é que as dezenas de partidos qualificados como de extrema-direita, nacionalistas ou populistas, advogam valores, princípios e políticas, em muitos casos, bastante distintas.

Alguns, não muitos, podem até ser classificados como (moderadamente) europeístas, pretendem uma Europa mais competitiva no plano global, ainda que com outras regras, menos supranacionais; outros, parecem pouco entusiasmados com o Estado de Direito e as regras da democracia, liberdade de expressão, de imprensa, independência do judiciário; quase todos apontam a imigração desregulada como principal inimigo; alguns apoiam a Ucrânia, outros têm menor condescendência e discordam do esforço pedido aos europeus em sua defesa.

É então impossível pensar num grande grupo político europeu de extrema-direita, ou nacionalista ou populista, em que caibam partidos como o Reagrupamento Nacional francês, os Fratelli de Itália, o Vox, os holandeses de Geert Wilders, Orban, o PiS polaco, o Chega e até (sabe-se lá de volta) os alemães do AfD? Impossível não é, decerto.

Demonstra-o o namoro recente, se me é permitido chamar-lhe assim, de Marine Le Pen, forte do apoio ao seu partido em França, liderado na frente europeia por Jordan Bordella, um jovem de 28 anos que é uma espécie de “pop star” da nova cultura à boleia do radicalismo de direita (há um de esquerda, claro), à primeira-ministra italiana Giorgia Meloni. É indiscutível a vontade de lograr a unidade de um movimento que é cada vez mais maré do que onda, e que poderia torná-lo num dos mais poderosos do areópago europeu.
Não passa despercebido o paradoxo que resulta de esses partidos serem sobretudo nacionalistas, anti organizações internacionais e globalismo, não fazendo a essa luz grande sentido a partilha de ideários políticos comuns em torno de políticas concretas. Salvo uni-los, bem entendido (pelo menos a alguns, quiçá a maioria), o essencial: a oposição ao projeto europeu (e em certa medida à NATO, ao tribunal penal internacional, ao Tribunal Europeu de Direitos do Homem). Espécie de política da terra queimada, provavelmente o que nesta fase lhes interessa.

Contra essa possibilidade ensaiou a ainda presidente da Comissão Europeia, candidata do PPE, Ursula von der Leyen, um discurso visando separar os partidos e grupos políticos dessa área; um ensaio, na minha opinião, mais astúcia política do que deriva ideológica ou convicção profunda, apesar das reações de membros dos socialistas europeus e até do seu PPE. O objetivo parece-me ser separar nacionalistas ou populistas menos maus (vg. Meloni) de radicais “maus” (como Le Pen ou o AfD). Uma jogada arriscada, que, como referi, fez ricochete.

Mas será talvez na opção entre duas hipóteses que se jogará o futuro da própria União: A da existência de dois (ou mais) grupos políticos à direita do PPE, distintos, um mais moderado, com o qual se poderá entender o PPE ou outros grupos; ou a hipótese (assustadora?) de um grupo único, ou maioritário, que pese enquanto tal, com posições convergentes antieuropeias.

Uma hipótese em que as políticas europeias sofrerão um enorme impacto, bastando para discernir o risco a sua mera enunciação: Migrações e asilo; economia, incluindo as adotadas regras da governação económica, competitividade da economia europeia, reforço do mercado interno na esteira do relatório Letta e do futuro Draghi; defesa e segurança, interna e externa; como conciliar transição ecológica e Pacto Verde com as exigências do quadro competitivo global, novas fontes de abastecimento energético; transição digital e sua regulação; inovação e investigação, a Europa da saúde, defesa do Estado de Direito e dos valores da civilização ocidental, e mais, muito mais.

Quando em breve, provavelmente em julho de 2024, observarmos o hemiciclo reunido em Estrasburgo, que via estará aí desenhada para os caminhos da Europa: O reforço da cooperação e da integração europeia ou o da sua desintegração?

Têm a palavra os eleitores europeus, daqui até 9 de junho.

Jurista e especialista em assuntos europeus