O fim das portagens: o Caso Portalegre

Podemos ilustrar os riscos da política orçamental que esquece o racional para promover o popular.

Temos dedicado vários artigos a refletir sobre as despesas e receitas do Estado. Tivemos o especial cuidado de separar a análise em dois universos distintos: despesas por um lado e receitas por outro.
Tentámos desta forma evitar qualquer confusão ideológica sobre o nível e dimensão (despesa) do Estado. Mas também é ideológico decidir como se assegura a receita para cobrir esta despesa. Se a receita é preferencialmente obtida pelo pagamento dos serviços prestados, por recurso aos beneficiários indistintos ou com recurso a soluções fiscais mais ou menos opacas. É a inevitável decisão entre o utilizador/pagador, o beneficiário/pagador ou o mero contribuinte.
Nada nos fazia supor que iríamos ter uma situação onde poderíamos ilustrar, como se tratasse de um estudo de caso, os riscos da política orçamental que esquece o racional para promover o popular. É o caso da suposta abolição das portagens nas ex-SCUT no dia 2 de Maio, por proposta do PS e voto favorável do Chega (e de todos os pequenos partidos de esquerda).
Vamos chamar-lhe Caso Portalegre e vamos analisá-lo uma ótica meramente racional.
Portalegre é a única capital de distrito que não tem uma autoestrada prevista. Julgo mesmo que nunca o teve. Verdade que Beja não tem auto estrada de momento, mas não só a A26 com origem na A2 foi iniciada com a realização dos primeiros 4 quilómetros, como a existência de canal expropriado e as promessas políticas fazem antever a sua construção.
Não me recordo que a exclusão de Portalegre da rede de autoestradas tenha merecido demasiada contestação. Os números falam contra qualquer iniciativa nesse sentido. O concelho tem 23340 residentes, diariamente os movimentos de entrada e saída do município ficam-se pelos 2556, existem cerca de 700 empresas empregadoras.
É fácil de ver que dificilmente se poderia justificar um investimento tão elevado, normalmente aconselhado para tráfegos acima dos 10 000 veículos/dia. Acresce que a A6, das autoestradas horizontais que servem de ligação a Espanha, optou pelo canal natural Estremoz/Elvas, o que deixou Portalegre suficientemente perto para não poder reivindicar e suficientemente longe para não poder beneficiar.
Claro que Portalegre também beneficiou da melhoria nas acessibilidades através do IP2, estrada naturalmente sem portagem e central à nossa interioridade. Mas isso não a impediu de perder população, mais de 10% nos últimos 10 anos, e menos 15% em mobilidade. Um dos muitos casos onde os custos da interioridade colocam enormes desafios
A 2 de maio, uma maioria parlamentar decidiu que a despesa com um conjunto amplo de autoestradas, as ex-SCUT, deixaria de ser parcialmente paga pelos utilizadores. Isto é, os custos de amortização do investimento realizado, os custos com a sua manutenção corrente ou excepcional (grandes reparações) deveria ser financiada por outros que não os seus utilizadores.
Abolir portagens é apenas isso, decidir que não devem ser os utilizadores a pagar esses custos. Curiosamente incluíram-se nestas autoestradas diferenciadas a autoestrada com mais pesados de matricula estrangeira (a A25) e a autoestrada com mais ligeiros de matricula estrangeira (a A22). Poupar o custo a estrangeiros numa altura que se discute a taxa turística é, no mínimo, curioso.
Pois se não são os utilizadores a pagar, a quem se vais pedir a cobertura da despesa? Não será aos beneficiários, pois não foi proposta nenhuma alteração à contribuição do serviço rodoviário que incide sobre o combustível fóssil. Foi assim decidido que serão os impostos a pagar esta despesa. Dito de outra forma, todos terão de pagar para que quase todos possam beneficiar das autoestradas em nome da descriminação do interior e … de alguns estrangeiros.
Esqueceram-se porém de Portalegre. Porque os residentes em Portalegre, que pagarão cerca de 200 mil Euros em impostos, tomando com base o montante de 8.776 Euros per capita que incide sobre cada Português, todos os anos serão onerados por esse custo mas em contrapartida nunca beneficiarão das vantagens das auto estradas.
Os 2 733 jovens que ainda resistem no Município não verão nenhum beneficio do imenso prejuízo financeiro que esta “abolição” causou às gerações futuras. E convêm lembrar que no Alto Alentejo o PIB per capita é 33% mais baixo que a média nacional. Só se se deslocarem, eventualmente para o litoral, terão acesso a essa contrapartida dos seus impostos.
Julgo que é fácil de ver quanto irracional foi esta decisão para o munícipe de Portalegre. Ele nunca beneficiou desse serviço, mas será chamado a pagá-lo em nome do…interior a que pertence.
Também não houve ninguém a avaliar outros impactos. Não houve críticas dos concessionários futuro das autoestradas a queixar-se do rombo no seu “corporate value”, não houve nenhum activista climático a protestar contra o incentivo marginal ao combustível fóssil, nenhum ferroviário a protestar contra o uso sem custos da infraestrutura. Só a recém-criada Associação dos Contribuintes esteve alerta e à altura.
O Caso Portalegre, a sua irracionalidade e o seu silêncio, só demonstram na prática a dificuldade de uma gestão racional de um Orçamento e consequentemente do Estado. E percebe-se a dificuldade de todos os deputados do interior ao decidirem votar entre onerarem os seus eleitores locais ou os seus eleitores nacionais. Porém, o Caso Portalegre até nisso é curioso. Porque Portalegre é tão pequeno que só elege dois deputados.
E curiosamente, nas recentes eleições, quem conseguiu representação parlamentar foi o PS e o Chega: exactamente os Partidos que permitiram a maioria que permitiu transferir um custo de outros para os seus eleitores que dele não podem beneficiar.
E aí reside o problema. Quando queremos trazer a racionalidade e o longo prazo para o centro das decisões políticas, o Caso Portalegre prova exactamente o contrário.

Gestor e ex-presidente do Novo Banco