Aproxima-se o fim de todos os campeonatos, das várias modalidades e das várias categorias. O que têm todos em comum? A fúria dos adeptos perante objetivos não cumpridos na temporada.
Em Portugal, à cabeça de todas as modalidades, temos o futebol masculino sénior. Nesta altura do ano, vemos os adeptos a exigir responsabilidades, a gritar palavras de ordem para despedir o treinador, o jogador A ou B e até o Presidente.
Por esta altura, devo dizer ao leitor que sou um adepto do SL Benfica e fui, durante 10 anos, árbitro de futebol (entre árbitro assistente da segunda divisão nacional, árbitro nos campeonatos distritais de Setúbal e árbitro da terceira divisão e quarto árbitro na primeira e segunda Liga). Vivi o mundo do futebol por dentro, pisei pelados e relvados, arbitrei jogos de miúdos e graúdos.
O fenómeno é sempre igual, não importa se estamos a discutir os três grandes do futebol português ou qualquer clube amador (onde jogadores e dirigentes colocam o seu próprio dinheiro ao serviço do clube). De seniores a miúdos, sempre que a equipa não ganha ouvem-se os clamores de “RUA” e outros impropérios menos simpáticos.
Olhando para o clube do qual sou adepto, neste final de época exige-se “a cabeça” de treinador e do Presidente. Curiosamente, ou não, na época passada eram apenas elogios para ambos. Bastou uma época menos conseguida, perdendo os maiores troféus do ano, para colocar a competência de todos em causa.
Para o adepto só os resultados contam. E só os resultados presentes contam. Para o adepto não há direitos dos trabalhadores. Aqui, o leitor deve ter ficado surpreendido com a mudança do rumo do texto…
É que treinador e jogadores são trabalhadores por conta de outrem. Mas culturalmente o adepto não quer saber disso. O mesmo adepto que, se questionado se um colega (na fábrica, no restaurante, na oficina, no cabeleireiro, ou em qualquer outra profissão) não tiver resultados num determinado ano, vai defender o colega incumpridor contra o patronato, contra o grande capital, vai dizer que não pode ser despedido porque tem família, tem passado, tem uma história e não pode ser despedido. Que o despedimento é ingratidão pelos serviços passados ainda que agora não cumpra.
É um fenómeno curioso. Pelo menos para mim que sou licenciado em Direito e não um especialista em sociologia ou psicologia. Que fenómeno será este que perante situações idênticas a mesma pessoa consegue defender despedimento para uns e trabalho eterno para outros. E, leitor, não é um fenómeno exclusivo dos treinadores e jogadores que ganham milhões, uma vez que estes são uma gota de água no universo das pessoas que fazem do desporto a sua profissão.
Outro ponto interessante é o tema dos salários. Quanto se discutem os salários dos gestores das sociedades cotadas e se conclui que ganham mais de 30 vezes o salário médio na empresa, o adepto, na qualidade de cidadão, indigna-se, porque a disparidade salarial é absurda e o gestor não merece essa diferença.
Mas se aplicarmos essa lógica ao futebol dos três grandes, o que dirá o mesmo cidadão, mas agora na qualidade de adepto? Devemos limitar os salários dos jogadores a um múltiplo do salário do roupeiro, do jardineiro que trata da relva ou do motorista do autocarro? Seguramente que o adepto gritará “ABSURDO!” porque para ganhar é preciso ter os melhores e os melhores custam dinheiro. Que para ganhar aos rivais só com o melhor treinador e os melhores jogadores “custe o que custar”.
Aqui a diferença salarial para outros trabalhadores não tem qualquer importância para o adepto.
Ainda nos salários, o adepto defende que se pague por objetivos: o avançado deve ganhar pelos golos que marca, o guarda-redes pelos jogos em que não sofre e todos pelas vitórias que têm. E só pelo que jogam. Se estiveram lesionados não recebem prémios.
Mas o mesmo adepto, na empresa onde trabalha, defende o salário fixo porque os resultados não dependem dele. Prémios, bónus ou retribuição variável são uma invenção do grande capital para explorar o proletariado. O que o adepto defende o mesmo cidadão/trabalhador odeia.
As elites muitas vezes olham para o futebol com desdém. Mas temos muito a aprender com o futebol. A seleção nacional e a Liga entram no Top 10 mundial. A economia portuguesa não está nem no top 10 da Europa. Os clubes portugueses formam profissionais ao ponto de conseguirem transferências não só com jogadores, mas também com treinadores. Nos últimos anos até dirigentes desportivos portugueses dão cartas noutros países.
Este fenómeno acontece porque os clubes e as seleções competem. A concorrência aguça o engenho. A concorrência tem uma exigência recorrente e a medida do sucesso está na classificação do clube ou da seleção. E o preço é alto porque perante o insucesso o lugar está em risco.
É esta exigência que obriga quem está no futebol a tentar fazer cada vez melhor. A inovar em todos os domínios (do recrutamento, da formação, da nutrição, da tática, do treino, etc.) e quem não acompanha essa inovação recebe logo o rótulo de acabado, ultrapassado, velho, mesmo que seja o trabalhador com mais vitórias na história do clube ou do país.
Se o adepto, na qualidade de cidadão, colocasse esta cultura ao serviço da economia e da sociedade, talvez o país discutisse o Top 10 europeu da mesma forma que o disputamos no futebol. Nem deve ser difícil porque:
Afinal somos liberais … mas só como adeptos!
Fiscalista e cofundador da ILYA