Dignidade incondicional

Para ‘combater a fome’ é preciso fazer o que tanto as ‘direitas’ como as ‘esquerdas’ exigem.

Numa visita recente à cidade de Brasília, capital do Brasil, confrontei-me com a existência do Ministério de Combate à Fome. Mais precisamente designado por Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

De acordo com o Índice Global da Fome (2023), este é, inegavelmente, um problema real. Há mais de 700 milhões de pessoas a viver em condições de subnutrição crónica à escala global.

Mas fará sentido um país ter uma entidade governamental criada com esse propósito específico? A fome que as pessoas estão a sentir e a viver é certamente uma consequência da falência de políticas económicas, sociais, agrícolas ou, até, de saúde.

Se a fome é uma consequência das desigualdades crescentes e da pobreza endémica, a pergunta legítima seria: não faria mais sentido investir em resolver os problemas estruturais que estão a causar a fome em vez de criar programas que se limitam a responder às consequências dos mesmos?

É um exemplo clássico do tipo de discussão a que se assiste na esfera política e que as redes sociais apenas têm contribuído para amplificar, acentuando de forma simplista uma nem sempre justa oposição esquerda-direita nestas matérias. Em suma, em jeito de caricatura, enquanto as ‘esquerdas’ apelam a que se entregue comida como medida de resposta imediata, as chamadas ‘direitas’ entendem que tais medidas perpetuam a pobreza de forma insustentável e que não resolvem os problemas de base. Enquanto as ‘esquerdas’ se focam em aliviar o sofrimento de imediato, através de políticas sociais, as ‘direitas’ querem acabar com todo o sofrimento futuro, por via das intervenções reformistas que ataquem a ‘causa das coisas’.

É comum assistir a troca de acusações entre atores políticos sobre como uns se limitam a ter intervenções caritativas, como outros revelam falta de sensibilidade social, ou ainda como haja quem não queira resolver a problemática de forma sustentável.

Quem tem razão? A resposta é todos e ninguém. A solução para os problemas do mundo não é dicotómica. Não há ‘balas mágicas’ que consigam resolver problemas complexos como a ‘fome’. Ninguém detém a verdade absoluta e, por isso, é que os tempos contemporâneos exigem líderes capazes de ter a humildade para aceitar isso mesmo.

Espera-se que quem tem o poder para tomar decisões em prol das pessoas, seja na liderança de um governo ou de uma comunidade empresarial, compreenda que hoje, mais do que nunca, precisamos que coloquem uma abordagem humanista no centro de todas as suas ações.

Esta forma de liderança, centrada num sentido de serviço para com o próximo, impele a que se compreenda que, para ‘combater a fome’, é preciso ter a capacidade de fazer tudo o que tanto as ‘direitas’ como as ‘esquerdas’ exigem. Em paralelo, simultaneamente, dentro do equilíbrio possível, que pondera sempre a urgência.

Isto é, as políticas de combate aos determinantes da pobreza, que culminam com a fome e que terão efeitos a médio e longo prazo, têm de ser articuladas com programas que efetivamente saciem a fome de quem não tem comida hoje. Para cumprirmos com o objetivo de ‘acabar com a fome’, temos de assumir que urge atuar no imediato, assim como ter uma visão a médio e longo prazo. Ou seja, temos de agir sobre a emergência ao mesmo tempo que resolvemos os problemas estruturais.

Este caso prático demonstra como a obsessão vigente de distinguir o que é de ‘direita’ ou de ‘esquerda’, que cada vez mais sequestra símbolos, palavras e retóricas, apenas nos desvia do essencial. Mais do que barreiras políticas ou de combates ideológicos, os cidadãos precisam de líderes capazes de usar o ‘bom senso’ para aplicar políticas baseadas na ciência e que não sejam insensíveis ao sofrimento daqueles a quem servem. Precisamos de líderes que defendam os interesses das pessoas e respondam às suas necessidades.

Quer isto dizer que as ideologias são dispensáveis? Não. As ideologias são necessárias e até desejáveis, não como fonte para alimentar discussões retóricas e vazias, mas sim como instrumentos capazes de contribuir efetivamente para o confronto saudável de ideias e para a construção de soluções que contribuam para o bem comum.

Ainda a semana passada, assisti em Oxford à entrega do prémio da Fundação Skoll ao programa ‘Food4Education’, que alimenta 300.000 crianças diariamente em escolas primárias em países africanos subsarianos, com particular enfoque no Quénia. Este programa tem contribuído para reduzir as faltas às aulas, garantindo uma presença mais assídua das meninas e meninos na escola. Mais ainda, ao garantir uma alimentação saudável para as crianças, tem-se verificado de forma mensurável uma franca e contínua melhoria nos resultados escolares de todos os que são abrangidos pelo programa. Isto tudo, através de uma organização sustentável que limita o desperdício ao mínimo e emprega os pais das próprias crianças para prepararem e servirem as refeições.

Eis uma intervenção liderada por uma organização sem fins lucrativos que cumpre o propósito imediato de garantir que as crianças são devidamente alimentadas, ao mesmo tempo que contribui para criar uma futura geração de cidadãos devidamente educados e capazes de serem agentes ativos nas suas comunidades.

A fundadora desta iniciativa, Wawira Njiru, compreendeu que a fome era uma das barreiras que impedia que as crianças da sua aldeia tivessem acesso à educação escolar. Perante isso, arregaçou as mangas e começou em 2016 um programa alimentar modesto na sua localidade.

No início deste ano, a ‘Food4Education’ ultrapassou a barreira de 30 milhões de refeições servidas e continua a crescer de mês para mês. Questionada sobre o porquê de investir a sua vida numa tarefa tão árdua, Wawira Njiru respondeu que é porque considera que todas as pessoas que vivem neste mundo merecem ter aquilo a que designou por ‘dignidade incondicional’.

Essa incondicionalidade deveria servir como o nosso compasso moral e como a nossa métrica de sucesso. Num mundo cada vez mais polarizado, temos a oportunidade de encontrar um denominador comum nas nossas comunidades que passa por nos unirmos para garantir que todos tenham a dignidade que merecem. E saibam que não estão sós.

Se não concordarmos em mais nada, que ao menos concordemos em trabalhar em prol de soluções sustentáveis no futuro e em servir as pessoas que nos rodeiam com compaixão.

Médico e CEO da I-DAIR