Tratado da Carta da Energia: não acertamos uma

Há anos que o TCE é a ovelha negra da ordem jurídica internacional do setor energético.

No dia 10 de janeiro o Diário da República publicou a Resolução 4/24 da Assembleia da República a aprovar a denúncia do Tratado da Carta da Energia (TCE), um instrumento de direito internacional que vincula hoje cerca de meia centena de países, incluindo praticamente todos os membros da União Europeia. Até à data em que escrevo, o Presidente da República não tinha ainda ratificado a denúncia, mas é inevitável que o venha a fazer nos próximos dias. O que procurarei aqui demonstrar é que a denúncia é apenas o último capítulo de uma história com quase 30 anos em que tem prevalecido o desconhecimento e o amadorismo por parte dos nossos governantes, que aliás tinham um dever reforçado de aplicar o tratado, até por ter sido assinado, com toda a pompa, no nosso país. E se é verdade que Portugal vai abandonar o TCE, o TCE não vai abandonar Portugal.
O TCE é há vários anos a ovelha negra da ordem jurídica internacional do setor energético. Acusado, nem sempre injustamente, de favorecer o investimento internacional em fontes fósseis de energia e de, por isso, estar em contradição com a política ambiental e climática resultante dos Acordos de Paris, o tratado tem sido especialmente relevante no domínio dos investimentos em energias renováveis. Estão pendentes centenas de processos arbitrais entre investidores no setor e países recetores do investimento, por alegadas violação das garantias conferidas pelo TCE àqueles. Aliás, o tratado é aplicável a todas as formas de energia, incluindo as energias nuclear, elétrica e do hidrogénio, protegendo tanto o investimento direto como o indireto, nomeadamente quando feito através de instrumentos financeiros.
Às cláusulas maximalistas do TCE – por alguma razão os EUA, que foram o seu inspirador, acabaram por decidir não o assinar – permitiram abusos e excessos jurídicos que, significativamente, redundaram numa condenação da Federação Russa, em 2014, a pagar aos ex-acionistas da empresa petrolífera Yukos a soma astronómica de 50 mil milhões de dólares, o equivalente, ao tempo, a 25% das reservas do banco central russo. Essa humilhação de Putin, através de uma decisão arbitral cuja anulação ainda hoje está pendente nos tribunais holandeses, poderá vir a ficar na história como a sentença de morte do TCE. Mas essa morte afetará mais Portugal do que qualquer outro país.
Foi Durão Barroso, então ministro dos Negócios Estrangeiros, quem, no dia 17 de dezembro de 1994, assinou, em Lisboa, o TCE. Portugal é, aliás, o Estado depositário do tratado. Apenas por esta razão, Portugal deveria ser o último país a denunciar o TCE, salvo razões ponderosas de interesse nacional.
É duvidoso que Durão Barroso ou o então primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva, conhecessem a dimensão histórica do documento, o primeiro tratado internacional multilateral que abrange um setor industrial que já então abarcava, direta ou indiretamente, 60% da economia mundial. Aliás, nos anos seguintes, nem os nossos governantes nem os profissionais do Direito, incluindo académicos, parecem ter ligado grande coisa às quase mil páginas do intrincado tratado, seus anexos e documentos completares.
Só isso pode explicar que, em 2011, o governo de Passos Coelho tivesse permitido que duas empresas estatais da República Popular da China, país que não é signatário do TCE, tenham adquirido posições de controlo na EDP e na REN através de sociedades veículo sediadas em países, esses sim, partes do tratado (Luxemburgo e Reino Unido). Mercê deste artifício, o governo chinês conseguiu para os seus investimentos em Portugal uma blindagem jurídica que, obviamente, os investimentos portugueses na China não podem desfrutar.
Face a esta irregularidade, mais do que uma vez defendi publicamente que se impunha Portugal exercesse o direito de recusa de benefícios (art. 17(1) do TCE), notificando as empresas investidoras chinesas e o Secretariado do TCE desse vício legal que, aparentemente, os governantes portugueses não detetaram.
Ao denunciar agora o tratado, Portugal, como qualquer outro país signatário, continuará sujeito às obrigações para com os investidores estrangeiros na área da energia, desde que provenientes de países partes do tratado, por mais 20 anos, na verdade até 2045. É a chamada sunset clause do artigo 47(3). Mas os investidores chineses terão ainda mais razões para celebrar do que quaisquer outros. É que, feita a denúncia, Portugal deixará de poder invocar o direito de recusa de benefícios. Estamos definitivamente presos às vantagens unilaterais obtidas pela China.
Alguém pensou nisso? Olhando para o processo legislativo na AR, parece que não. O parecer da Comissão de Negócios Estrangeiros, subscrito pelos deputados do PS Ivan Gonçalves e Sérgio Sousa Pinto, é tão lacónico quanto irrelevante. Em conclusão: a falta de estudo, rigor e diligência que tem acompanhado a vida do TCE no nosso país vai manter-se até ao seu último suspiro. “Um povo de suicidas”, chamou-nos Unamuno. Se calhar tinha razão.

Advogado, sócio fundador Miranda Law