“É preciso repensar o modelo da administração pública”
É importante repensar a forma de organização da administração pública em Portugal. Temos assistido, nos últimos anos, a quebras significativas na qualidade e na quantidade dos serviços públicos. Penso que a generalidade dos portugueses, infelizmente, sente esta quebra ao longo dos últimos anos e, ao mesmo tempo, temos assistido a um crescimento do número de funcionários públicos. Estas duas tendências, de alguma forma, não parecem ser muito consistentes e colocam a pergunta sobre a necessidade ou eventual necessidade de mudarmos de modelo.
Penso que estas questões entroncam de forma direta com os temas que foram lançados, nomeadamente a progressão das carreiras ou o nível de diferenciação em termos das remunerações, mas também a monitorização do desempenho dos diferentes organismos, a monitorização do desempenho individual dos funcionários públicos dentro dos organismos e questões relacionadas com os modelos dos próprios serviços públicos.
Há modelos mais concentrados, com grande enfoque na componente da administração pública só ela, mas também há outros modelos que envolvem parcerias e colaborações com outras entidades. Penso que esse tipo de modelos pode ser bastante interessante em Portugal, como já o é em vários outros países da União Europeia e por todo o mundo.
Desde já, temos este contexto muito adverso, com quebras muito significativas dos salários reais dos funcionários da administração pública. Esta situação cria um contexto desfavorável para o bom funcionamento da administração pública.
Precisamos, obviamente, de atrair profissionais qualificados, precisamos de motivá-los, precisamos de ter capacidades de reter aqueles que são mais importantes para os serviços públicos que estão a ser desempenhados.
Estas medidas políticas dos últimos anos, no sentido de não fazer acompanhar a remuneração nominal da inflação, levaram a uma quebra muito pronunciada da qualidade de vida dos funcionários públicos em Portugal.
É um contexto muito adverso para o funcionamento da administração pública em Portugal. Agora, será que também não será importante repensarmos o modelo da administração pública em Portugal?
Será que, neste contexto tão adverso, com os custos tão grandes que os próprios utilizadores dos serviços públicos têm estado a enfrentar, não haverá aqui uma necessidade de repensarmos estes modelos?
“Avaliações são feitas de forma injusta e incorreta”
A avaliação faz parte da nossa vida pessoal e profissional. Todos nós estamos a ser avaliados. Quando se diz que não há avaliação na administração pública, não é verdade; há avaliação. O que não há é progressão automática porque há quotas que, em vez de promoverem a progressão, promovem o travão. Ou seja, todos os trabalhadores da administração pública, independentemente da sua atividade profissional, hoje são avaliados.
O problema é que esta avaliação é feita de uma forma injusta, incorreta, diferenciada e não corresponde ao objetivo de motivar os trabalhadores, reconhecer a sua capacidade e, simultaneamente, promover a sua evolução na carreira profissional. É por isso que temos problemas graves na administração pública, nas carreiras médicas, no congelamento do tempo de serviço dos professores e na área da justiça. Dos funcionários judiciais, há anos que ando a ouvir dizer, todos reconhecem que faltam funcionários. É necessário valorizar aquela atividade profissional e, até hoje, vários governos passaram pelo poder e não resolveram o problema. Falo dos enfermeiros, dos trabalhadores administrativos e assim sucessivamente.
Os trabalhadores não têm medo de ser avaliados; querem é ser avaliados de uma forma justa, transparente, equitativa e objetiva. Tudo o resto é a visão economicista. As quotas foram introduzidas na avaliação não para motivar os trabalhadores, mas para entravar a subida dos trabalhadores. Enquanto houver quotas é a própria administração pública, ou o setor privado, que está a fazer uma diferenciação. Ora, a diferenciação não se faz pelas quotas. Então, se tivermos aqui três pessoas que são boas profissionais e são competentes, por que razão é que só pode passar uma e não passam as outras duas?
Na administração pública é assim porque há uma quota e só podem passar 25%; agora alteraram para 50%. Os outros têm de ficar, passo o termo, à porta. Isto, em vez de motivar, desmotiva; em vez de incentivar, desmotiva. Há aqui um problema de fundo em relação aos salários: os salários devem ser todos iguais? Os salários da administração pública hoje não são todos iguais. O que tem de haver é uma valorização do salário-base correspondente àquilo que deve ser o entendimento da sociedade. Para que tenha bons serviços públicos, tem de se recompensar e reconhecer os trabalhadores que os prestam. Não há bons serviços públicos com trabalhadores mal remunerados, mal tratados e desrespeitados.
Arménio Carlos: “Há menos pessoas interessadas em ir para a administração pública”
Quanto aos salários, habitualmente há negociações na função pública e o Governo pode decidir, sozinho, mas, regra geral, há um valor igual para todos. Deve continuar assim?
Arménio Carlos — Para já, não há um valor igual para todos. A proposta que o Governo apresentou é de 52 euros mínimo e depois vai ao máximo de 3%, nomeadamente para os técnicos superiores. Mas, se queremos bons serviços públicos e pagamos para ter bons serviços públicos, compete ao Estado assumir essa responsabilidade e, para isso, temos de ter profissionais bem remunerados.
Como é que se justifica uma atualização de 3% para os técnicos superiores e outros, quando lhes estamos a exigir o máximo, mas depois, quando chega a altura de pagar, não pagamos?
Hoje, estamos a verificar cada vez mais haver menos pessoas interessadas em ir para a administração pública porque não se sentem reconhecidas nem devidamente remuneradas. E isso depois cria aqui, digamos, um declive. É o chamamento de alguns deles para a iniciativa privada e, a partir daqui, com prejuízo da prestação do serviço público.
Não estamos a pôr em causa que não haja concorrência. A concorrência é salutar; tem é de ser feita nivelando por cima e não nivelando por baixo, como aconteceu com os salários ao longo destes anos todos. Agora falou-se na questão da atualização dos escalões do IRS, 3%, supostamente porque a inflação prevista para o ano é de 2,9%. Não acredito, mas dou de barato que assim será…
– Aumento de 3% não repõe a perda anterior porque, entretanto, a inflação foi muito maior, certo?
AC – Essa é a primeira questão. Não há recuperação do poder de compra. Em segundo lugar, para aqueles trabalhadores que, na administração pública ou no setor privado, tenham um aumento superior a 3% serão penalizados no IRS porque, se porventura receberem mais do previsto para a atualização dos escalões, depois vão pagar mais. Ora, isto não faz sentido porque é a lógica da manutenção dos baixos salários. A ideia de pressão sobre os salários e sobre o subconsciente dos trabalhadores (porque se ganharem mais correm o risco depois de pagar mais) não pode funcionar assim. Tem de haver aqui uma outra perspetiva, quer no que respeita à atualização dos salários, quer no que respeita a uma visão mais global da atualização dos escalões do IRS.
Repensar o modelo da administração pública passaria pelo quê?
PM – Passaria talvez por ter em conta experiências nacionais e internacionais nesta área, nomeadamente com o estabelecimento de parcerias entre o setor público e o setor privado ou o setor social.
No caso da saúde, foram feitas várias iniciativas nesse sentido, muitas das quais já foram revertidas. Houve análises muito claras sobre esta matéria, nomeadamente da parte do Tribunal de Contas, que apontou para vantagens muito importantes deste modelo de parceria tanto para o país na perspetiva do contribuinte, como, ainda mais importante, na perspetiva do utilizador destes serviços.
Estas parcerias levaram a melhorias nos cuidados de saúde, a custos mais baixos para o contribuinte e, no entanto, estas parcerias foram revertidas ao longo dos últimos anos. Isto é uma situação muito negativa, porque claramente estamos a perder de todas as perspetivas.
AC – Creio que o problema é outro. Ao contrário do que se procura agora fazer crer, as parcerias público-privadas, nomeadamente na saúde, foram uma área de negócio que foi aberta para o setor privado e, em muitos casos, até não correspondeu porque se gastou mais e os serviços até nem foram melhores.
Depois há uma ou outra exceção, em que houve uma melhoria. Para mim, neste caso concreto, o que importa não é se a situação vai melhorar com as parcerias. O que importa é tomar as medidas para que o Estado assuma as suas responsabilidades do ponto de vista da administração pública, para promover alterações de organização e gestão e dar resposta às necessidades dos utentes. E isso passa pela rentabilização dos quadros da administração pública ou a contratação de outros para prestar um serviço público e não pela via da parceria público-privada.
Pedro Martins: “Deve haver parcerias entre setor público, privado e social”
É necessária uma melhor gestão do Estado e podemos repensar modelos, mas a questão é: com as pessoas que temos, não poderíamos gerir melhor os recursos?
PM – Infelizmente, a questão das pessoas que temos é uma questão complicada. Quando vemos, por exemplo, a situação da educação, cada vez temos menos professores, cada vez há mais alunos que têm turmas incompletas e que não têm professores em algumas das suas disciplinas. Portanto, a quantidade total de recursos humanos afeta a estes serviços começa a reduzir-se e há, aliás, dificuldades muito sérias, em termos de extrapolação para os próximos anos. Há um envelhecimento muito pronunciado do corpo docente, o que faz pensar que os problemas atuais são relativamente pequenos em relação aos problemas futuros.
Há também aqui um ponto mais transversal que é a valorização de algum nível de experimentação, no que diz respeito à provisão de serviços públicos. Isto é, se considerarmos diferentes modelos de provisão dos serviços públicos, permitirmos que diferentes entidades possam desenvolver essa provisão de formas algo diferenciadas e, depois, num contexto de monitorização de indicadores de avaliação dos impactos destas diferentes abordagens, conseguir perceber quais são os modelos que efetivamente se traduzem em mais vantagens para os utilizadores.
E, já agora, também há aqui uma questão de fundo que poderá ser importante no quadro deste debate, que é estabelecer o que é prioridade dos desafios para a administração pública em Portugal. Penso que a prioridade é melhorar a qualidade e a quantidade dos serviços públicos e conseguirmos, com os recursos que são afetos pelos contribuintes e por outras fontes, proporcionar os melhores níveis de saúde, educação e de vários outros serviços públicos à população e, em particular, junto dos mais desfavorecidos.
– E isso tem sido conseguido?
PM – Claramente que não, nomeadamente nos últimos anos, com uma quebra muito pronunciada dos serviços públicos. Sendo esta a prioridade, acho que isto predispõe-nos imediatamente para uma maior flexibilidade em relação aos modelos.
Liberta-nos, de uma forma algo monolítica em termos da forma de pensar a administração pública para a consideração de outros modelos que se possam traduzir em melhor educação, em melhor saúde, em melhor justiça, etc. Portanto, não dar necessariamente um enfoque exclusivo ou principal à administração pública, tal como ela existe atualmente, mas considerar outras formas de organizar a administração pública, definir em sentido mais amplo, mais lato, para que os utilizadores possam aceder a melhores serviços públicos.
– Há algum estigma relativamente à figura do funcionário público? Haverá um rótulo do funcionário público preocupado com o seu horário de saída e trabalha pouco?
AC – Há esse estigma; estigma que não foi lançado por acaso e foi lançado por sucessivos governos, sempre na perspetiva economicista de passar a ideia de que o funcionário público era um privilegiado relativamente aos outros trabalhadores, e não era. Começou a instalar-se essa ideia de que o trabalhador do setor público era um privilegiado, para quê? Para tentar dividir a população e para tentar virar uma parte da população, e particularmente os trabalhadores do setor privado, contra os trabalhadores da função pública. Hoje, está-se a ver que essa divisão teve um objetivo: dividir para reinar.
Ao mesmo tempo, essa administração estava a gastar, de uma forma leviana, dinheiro com outro tipo de serviços como recursos ao setor privado, desperdiçando as competências, as capacidades e as qualificações dos profissionais que estavam na administração pública. Foi assim com as parcerias público-privadas das autoestradas e foi assim com muita coisa. Foram muitos milhares de milhões que foram gastos para favorecer o setor privado à custa daquilo que era o papel da administração pública.
– Mas não foi reduzido o número total de funcionários públicos? Aliás, até tem aumentado…
AC – É verdade, mas tem aumentado porquê? É que no período da Troika, com o Governo do PSD-CDS, houve uma razia brutal do número de trabalhadores da administração pública e chegou-se a uma certa altura que os serviços da administração pública já não conseguiam dar resposta, numa situação insustentável.
– Mas isso foi em 2011 ou 2012. E nos últimos anos?
AC – Sim, a partir daí teve de se ir repondo. Agora, o problema é que está a aumentar o número de trabalhadores com vínculos precários dentro da administração pública. Isso é que não se justifica, mais a mais com um governo que diz que é contra a precariedade e depois a fomenta.
Mas ainda em relação à gestão e à conceção da administração pública, e ouvindo o Dr. Pedro Martins, eu quase que me atreveria a dizer que o que o Dr. Pedro Martins está a propor é um assalto dos privados à administração pública e nalgumas áreasque são muito apetecíveis como, por exemplo, a saúde e a segurança social. Estas duas áreas movimentam milhões de pessoas e milhares de milhões de euros. Daí o interesse na alteração do modelo para captar, para abocanhar, a administração públicae para, em vez de prestarem um serviço público, passa a ser um serviço dirigido e imaginado do ponto de vista do negócio.
Nós não nos podemos esquecer que há muita coisa para melhorar na gestão e na organização da administração pública e é necessário valorizar os seus profissionais. Quando chegou a altura mais difícil que nós tivemos nos últimos anos (a pandemia), quem é que respondeu na área da saúde? Nada contra o setor privado, mas cada um deve estar no seu espaço e cada um deve provar no seu espaço que é melhor do que o outro. Oiço muito falar de seguros de saúde, mas o que sei é que o seguro de saúde tem um determinado plafon e, se uma pessoa for para um hospital privado, quando atingir esse plafond é convidada ou a pagar do seu bolso os encargos para a manutenção da assistência ou a sair do hospital para ir procurar ao setor público a continuação da assistência. O setor privado existe para fazer negócio, para ter rentabilidade, e depois logo se vê.
– Pedro Martins. imagino que não defende um assalto ao Estado?
PM – Há um confronto interessante entre duas perspetivas e duas visões para a administração pública em Portugal e para o debate entre a produção e a provisão de serviços públicos. Há uma perspetiva no sentido de haver um monopólio ou uma exclusividade total dos serviços públicos por parte da administração pública e, em confronto, há outra abordagem de maior flexibilidade nestes modelos.Nos casos em que o modelo que envolve alguma parceria com outras entidades que possam dar melhor qualidade de serviço junto dos utentes, então optar por esses modelos alternativos. Para mim, a prioridade é a qualidade e a quantidade dos serviços públicos junto dos utentes.
Temos exemplos bastante claros de projetos e de experiências que trouxeram resultados muito positivos, na perspetiva do contribuinte e do utente. Agora, deixo esta ressalva: o modelo da parceria não funciona necessariamente sempre bem, deve ser bem desenhado e deve haver transparência para saber quem sai beneficiado. para criar os incentivos mais adequados para a melhoria da qualidade dos serviços. Nós sabemos que tradicionalmente os serviços públicos são proporcionados num contexto de inexistência de concorrência e sabemos também que, em geral, não sempre, mas a concorrência pode ser um fator muito importante para a melhoria da qualidade dos serviços.
– Mas temos ou não funcionários públicos a mais?
PM – Olhamos para as escolas e vemos cerca de 100.000 alunos que não têm todos os professores nas suas disciplinas. Aqui não temos funcionários públicos a mais. Por outro lado, será que poderia haver outros mecanismos com colaborações com os setores privado e social para ganhar alguns resultados adicionais para perceber como é que o sistema poderia funcionar melhor? Sou favorável a este tipo de experimentação.
– Se tivessem esse poder, o que mudariam no sistema de avaliação e valorização do trabalho na função pública?
AC – Em primeiro lugar, valorizava os profissionais da administração pública, do ponto de vista salarial e das carreiras profissionais. Em segundo lugar, procurava introduzir alterações ao modelo para evitar mercantilizar um conjunto de serviços públicos. Os serviços públicos devem ser públicos e devem ser prestados pelo Estado.
PM – Uma primeira medida seria o reforço da remuneração dos funcionários públicos porque têm sofrido muito com as políticas dos últimos anos, nomeadamente com a inflação. Uma segunda medida seria o lançamento de vários projetos-piloto em várias áreas da administração pública: a educação, a saúde, os serviços de emprego e formação profissional. Nota: estamos perante um contexto muito diferente com a introdução da inteligência artificial.