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“Temos um crescimento exponencial da carga fiscal”
CARLOS LOBO
Ex-secretário de Estados dos Assuntos Fiscais
A questão do choque fiscal, a meu ver, é clara. Nós, neste momento, temos efetivamente um choque fiscal, mas é contra nós, ou seja, temos de facto um crescimento exponencial da carga fiscal ano após ano. Mesmo este ano, de acordo com os mapas do orçamento do Estado para 2024, temos um crescimento substancial da carga fiscal, e isso tem sido contínuo nos últimos anos.
Se Portugal se quer manter competitivo, tem de se tornar mais eficiente e a eficiência traduz-se na redução necessária do encargo fiscal, porque o encargo fiscal em si mesmo gera uma ineficiência na estrutura produtiva. Por essas razões, e tendo em consideração a acérrima concorrência internacional com o nosso país enfrenta, temos de repensar o nosso sistema fiscal de uma forma séria e isso passa por um choque, mas um choque que para terminar na área fiscal tem de começar na área da despesa e esse parece-me ser o ponto de partida para uma discussão sobre a carga fiscal em Portugal.
A tributação das empresas vai muito para além do IRC e das questões da taxa relacionada com o IRC. Ou seja, hoje em dia quando nós falamos da tributação das empresas falamos não só do IRC como também de toda uma série de instrumentos que estão relacionados com o IRC, mas também falamos de tributações autónomas, de contribuições extraordinárias sobre o setor energético ou sobre o farmacêutico, taxas de segurança alimentar mais.
Há toda uma miríade de outras contribuições que para maquilhar uma não subida do IRC têm sido sectorialmente criadas, tendo como alvo algum sectores que são apelidados de “ricos”, no sentido de não subindo a taxa do imposto, arrecadar mais receita das empresas. Isso destrói a harmonia do sistema e cria um modelo de desagregação, de incerteza e de complexidade que não é desejável. Por isso, quando nós dizemos que a nossa taxa de IRC é de 21, etc., isso não é verdade, porque depois ainda temos a derrama estadual, ainda temos toda uma série de sobretaxas e de contribuições que podem fazer com que a tributação efetiva duplique ou mais do que duplique a taxa nominal de IRC.
Por isso, a questão de um choque fiscal na taxa de IRC até poderia não ter efeito porque de facto a receita lateral que é alcançada supera ou compensa esse modelo.
“Houve alguma redução dos impostos em Portugal”
JOÃO LEÃO
Ex-ministro das Finanças
É importante enquadrarmo-nos nos desafios que o país enfrenta. Ao longo dos últimos anos, e aqui deixe-me discordar um pouco, houve aqui alguma redução dos impostos em Portugal. Os números, estatisticamente, são afetados pelo facto de ter havido, não podemos esquecer, uma revolução no mercado de trabalho, ou seja, há mais 1 milhão de trabalhadores agora do que havia em 2015, são mais 20%, e quando o peso dos trabalhadores aumenta no PIB, o peso da massa salarial aumenta no PIB por causa dos trabalhadores, há mais contribuições para a Segurança Social, há mais impostos, e isso parece aumentar a carga fiscal mas os impostos em si diminuíram, diminuíram sobretudo ao nível do IRS.
Esta proposta do orçamento tem uma redução bastante significativa do IRS, são quase 10% das receitas do IRS que, de um ano só e que são reduzidas. Queria chamar a atenção que não há praticamente nenhum país da Europa a fazer isto nesta situação, não é fácil reduzir os impostos, alguns até estão agora a aumentar alguns impostos temporários que tinham reduzido e que agora estão a repor.
Portugal é praticamente o único país que está a reduzir significativamente os impostos no próximo ano. É verdade que Portugal, contrário dos outros países europeus, parte nesta fase numa situação orçamental bastante melhor ao nível do défice. Portugal é dos poucos países da Europa que tem excedente orçamental, saiu da pandemia com uma situação financeira, do ponto de vista do défice, muito positiva, mas ainda tem uma dívida pública muito elevada. Mesmo assim, pela primeira vez, Portugal vai este ano sair do grupo dos países mais endividados. Outro sinal positivo, é que queremos ter uma dívida já ligeiramente abaixo de 100%, que é uma condicionante também na dimensão fiscal.
Penso que ainda existe alguma margem para reduzir os impostos, mas também devemos ter alguma humildade na ideia de que uma redução de impostos provoca efeitos potenciais sobre o crescimento. Depende se for acompanhado de uma redução da despesa ou não, caso contrário é insustentável. Depende de quão eficiente é essa despesa a ser reduzida em áreas em que melhora a eficiência do país ou não.
Portugal é dos países que mais vai envelhecer nos próximos 10-20 anos e há aqui desafios muito grandes relacionados com o sistema de pensões e com o Serviço Nacional de Saúde. Por outro lado, Portugal é dos países onde se paga menos IRS em percentagem do PIB na Europa, excetuando os países de Leste.
Carlos Lobo: “Ainda temos um sistema de gestão das finanças públicas do séc. XIX”
– A carga fiscal e o seu peso nas empresas, isso pode ajudar ou não na competitividade das mesmas?
CL – É um malabarismo com quatro bolas e há duas bolas que estão presas. A primeira bola é a bola do défice, ou seja, nós temos restrições ao nível do défice e temos de ter um modelo de estabilidade: zero défice. Concordo em absoluto com o que está na proposta [OE 2024], excedente é ótimo, temos uma péssima fama ao nível internacional de apresentar excedentes, é ótimo.
Temos a bola da dívida e essa bola está muito gorda e tem de ir encolhendo e isso é nossa prioridade crítica, tendo em consideração o aumento da taxa de juro que nos obriga a despender bastante. Por isso, estas duas bolas ficam ali reservadas e que não se podem manipular. Depois temos a bola da despesa e da receita e temos de ter a habilidade de gerir isto. Ou seja, estas são as duas bolas no âmbito da nossa política orçamental.
Dentro da bola da despesa, qual é o nosso problema? Ainda há pouco falou da linha ferroviária do século XIX, nós ainda temos um sistema de gestão das Finanças Públicas do século XIX, isto é, o nosso modelo de gestão orçamental e de tesouraria ainda assenta em modelos de caixa que foram introduzidas em Portugal por Napoleão. Se um tabelião de Napoleão ou um devedor da fazenda napoleónico entrasse hoje no Ministério das Finanças, ele conseguia a gerir perfeitamente as nossas contas públicas, ou seja, o que significa algo que está mal quando estamos a caminho do século XXII.
Neste momento, o bom gestor público é aquele que no dia 31 de dezembro conseguiu gastar a sua dotação, ultrapassando o máximo possível as cativações, como o ministro das Finanças tentou ao nível da estrutura orçamental e se possível conseguir uma garantia de ter um incremento do orçamento no ano seguinte e a autorização para contratação de novos trabalhadores. Isto é o paradigma.
Sobre a avaliação da qualidade de serviço, a avaliação dos funcionários, a verificação de desempenho, unidades de serviço público criadas, isso nem nada é considerado nos modelos de atribuição da verba orçamental àquele serviço. Por isso, nós continuamos a ter um Estado organizado nos modelos do século XIX que caminha para o século XXI.
Outra coisa, quando nós temos um problema grave que temos de resolver, o que é que nós fazemos? Criamos uma task force, que é a forma de criarmos, não destruindo a estrutura do Estado, uma estrutura matricial para resolvermos aquele problema.
Resolvemos o problema e somos eficientes nisso, sempre: grandes obras, problemas da covid, criamos sempre esta task force e resolvemos. Quando tudo termina, o que é que acontece? Não fazemos a reestruturação de toda a máquina em função daquilo, mas voltamos ao modelo do século e XIX e fica tudo na mesma.
Obviamente que isto cria um lastro de despesa que torna quase impossível, tendo em consideração esta manipulação das bolas, nós mexermos na parte da receita porque temos uma estrutura: eu porque tenho as outras duas bolas, a pesada da dívida e a neutra do orçamento, nunca vou conseguir baixar estruturalmente a receita enquanto não fizer este choque do lado da despesa.
João Leão: “Envelhecimento da população sobrecarrega muito a despesa”
– Para haver uma redução de impostos em teoria teria de haver uma redução da despesa. Onde é que seria possível cortar a despesa, e pela sua experiência também como ex-ministro das Finanças?
JL — Esta tendência de envelhecimento da população sobrecarrega muito a despesa, representa parte importante da nossa despesa: pensões e saúde, e outras prestações sociais, quase 50% da nossa despesa é para os mais velhos, portanto, eles têm um peso muito grande no orçamento de Estado, é preciso perceber que é um desafio muito grande.
Mas aqui na parte dos impostos queria só chamar a atenção para o facto de os dados objetivos que temos dizerem que ao nível dos impostos diretos estes são cerca de um terço mais baixos (dados da Eurostat) do que os da média da União Europeia. Claro que aqui há diferentes regiões: há o leste da Europa, que tem taxas mais baixas, e depois a Europa Ocidental, que tem taxas mais altas do que Portugal. Por que é que os impostos diretos pesam menos no PIB do que no resto da Europa? É sobretudo por causa do imposto sobre o rendimento, não tanto o imposto sobre das empresas, que é mais volátil. Portugal tem taxas que podem ser mais altas, mas há muitas empresas que não pagam impostos e há empresas muito pequenas que pagam poucos impostos; os impostos estão dirigidos a um determinado grupo de empresas.
Ao nível do IRS é importante perceber que, face a alguns países, as taxas começam mais cedo a subir. Isto em parte decorre do facto de sermos um país com salários mais baixos. A estrutura do IRS tem de se adaptar à estrutura dos salários existente, senão cobra poucos impostos.. Além disso, nós somos dos poucos países da Europa em que no salário mínimo não se cobra IRS, enquanto em muitos países europeus, que têm salários mínimos mais elevados, já contribuem para o IRS, com taxas baixas, mas contribuem.
Portugal tem uma estrutura de impostos em que os impostos diretos são mais baixos do que a média europeia, sobretudo por causa do IRS, e tem impostos mais altos que a média europeia nos impostos indiretos.
– Deveria ou não haver algum estímulo fiscal e, obviamente, uma reestruturação do sistema olhando sobretudo para os países com quem nós estamos a competir na cauda da Europa, correndo o risco nos próximos anos sermos ultrapassados?
JL – Na verdade, nós competimos com toda a Europa e com o resto do mundo. Em determinadas indústrias com salários mais baixos nós competimos com a Europa, mas não nos queremos posicionar só nessa dimensão.
Portugal até tem tido bastante sucesso, para além do Turismo, que obviamente é um grande sucesso em Portugal, e que esses países da Europa do Leste não têm tanto como nós, na atração de empresas de serviços na área de trabalhos qualificados, nas TIC [Tecnologias da Informação e Comunicação], nas empresas de suporte para toda a Europa. Conhecemos muito jovens que trabalham em multinacionais em Portugal, em Lisboa, para vender serviços de suporte para a Europa toda, seja na área financeira ou na área tecnológica. Agora, nessa dimensão nós não estamos a competir propriamente com esses países, estamos a competir porque somos um país atrativo, um país com jovens qualificados, um país onde muitas pessoas de vários países querem viver.
Conheço muitos empresários que dizem que uma das atrações que Portugal tem é o facto de ser um país aberto, tolerante e estável, ao contrário dos países de leste, que não são. Nós não estamos só competir com eles, estamos a competir com a Europa e com o mundo e estamos a crescer mais do que a Europa nos últimos anos.
Carlos Lobo: “Para um jovem qualificado, os primeiros escalões de IRS são altamente punitivos”
– Oferecemos segurança, sol, praia, mas do ponto de vista orçamental ou fiscal, não há margem para isso?
CL – Oferecemos. Temos um regime que foi um choque fiscal, o regime dos residentes não habituais foi introduzido em 2009, quando era secretário do Estado. Pela primeira vez, Portugal teve um regime de competitividade em que ofereceu estabilidade por 10 anos, um regime fiscal altamente atrativo em diversas vertentes.
O senhor primeiro-ministro anunciou a revogação do regime dos residentes não habituais porque, alegadamente, isso tem um efeito pernicioso na habitação. Durante 14 anos, fizemos um esforço enorme em criar os canais, o regime português era reconhecidamente o mais competitivo da União Europeia ao nível de atração destes profissionais de alto valor acrescentado e numa penada é extinto. Para mim, é o aspeto mais negativo desta proposta do orçamento do Estado porque aquela experiência de choque fiscal que estava a ter sucesso foi inevitavelmente abalada por esta decisão.
Na questão da demográfica e do envelhecimento da população nós não podemos estar à espera que seja a capacidade de regeneração natural dos portugueses que venha resolver o problema da natalidade.
Temos muita gente a sair do país…
JL — Nos próximos 10-20 anos a minha geração vai-se reformar e vamos ficar com o mercado de trabalho essencialmente mais qualificado do que a média europeia. IPortugal fez uma mudança muito acelerada ao nível das qualificações e essa mudança tem de ser aproveitada no sentido de garantir que uma parte desses jovens qualificados ficam cá, que outros venham e que isto motive um forte aumento da produtividade que permita sustentar salários mais elevados.
CL — Completamente de acordo com o João. Nós temos de ver o nosso país como um player num jogo global, e temos que tentar atrair os melhores. Isso significa o quê? Políticas de atração de migrantes ativas e não estarmos a bloquear entradas ao nível do SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], tratar aqueles que nos procuram da melhor forma possível para virem eles e as suas famílias, ou seja, de uma forma totalmente integrada, fazer com que o talento que venha para Portugal seja do mais qualificado possível.
Mas também temos de reter talento…
CL — E temos de reter talento, temos de jogar nos dois lados. Para um jovem qualificado, devido à nossa estrutura fiscal, os primeiros escalões de IRS são altamente punitivos, tomando em consideração os nossos países mais concorrentes, nomeadamente do centro da Europa.
Depois, outra coisa, atraindo essas pessoas eleva-se o preço da habitação… Ora, o problema da habitação em Portugal é real, mas é um problema de oferta, não de procura. Haver procura não é mau, temos é de permitir que a oferta se ajuste.. E o que é a oferta? É produção de habitação pública, com arrendamento público. Portugal tem 2%, a Alemanha tem 20% e a Holanda tem 40% de arrendamento público de oferta de habitação. Por isso, o que temos de fazer é também uma revisitação de todo o nosso processo administrativo de aprovação de prédios, de áreas urbanas, de acabarmos com o fim do mito da construção em altura, da incapacidade que uma cidade tem se expandir.
– Como ministro das Finanças conseguiu perceber qual é o património do Estado?
JL — Há uma capacidade enorme a explorar no património do Estado. A zona ribeirinha a sul do Tejo, que vai desde Cacilhas até quase ao Seixal, é uma zona em que se podem construir milhares fogos habitacionais. Teria um impacto estrutural muito maior do que pequenas reabilitações.