O antigo ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, lembrou recentemente que só 30% dos terrenos estão cadastrados desde 2018. Como é que se resolve, na prática, a falta do cadastro territorial nacional?
Carlos Baptista Lobo – Os 30% que estão cadastrados são as grandes propriedades do sul do país que, na prática, já tinham um cadastro geométrico da administração fiscal. O que falta é precisamente a parte do centro e do norte. Podemos ter 30% da área cadastrada, mas temos menos de 10% das propriedades! Por exemplo, no distrito de Bragança há tantas propriedades como no resto do país, ou seja, temos aí um problema de micro propriedade.
Para termos uma estratégia de crescimento, temos de ter uma estratégia de gestão. E para termos uma estratégia de gestão, precisamos de saber o que é que estamos a gerir. O facto é que Portugal, pela inexistência de cadastro territorial histórica, não sabe o que é para gerir.! Fazemos Planos Diretores Municipais (PDM) sem ter noção dos limites cadastrais e do solo. Falamos de limpeza das florestas quando toda a gente ignora quem é o proprietário e os custos da limpeza, quando fazemos micro-operações. Não existe mão de obra disponível para limpar as florestas, os custos são proibitivos. Tem de haver escala e o sistema ser mecanizado.
O problema é que, se começamos com sistemas mecanizados, temos o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) a dizer que estão-se a destruir sistemas sensíveis; ou seja, estamos enredados numa malha de proibições.
Numa crónica recente no “Portugal Amanhã”, afirmou que falta registar 10 milhões de propriedades no Balcão Único do Prédio (BUPI). Como incentivar os proprietários a fazer este registo, que é voluntário?
CBL – O problema não são os conflitos positivos; são os conflitos negativos ou quando encontramos terras que não são de ninguém. Por exemplo, na Área Integrada de Gestão da Paisagem (AIGP) de Álvares funciona o modelo voluntário. Apesar de todos os meios que foram disponibilizados para fazer gestão da paisagem de mil hectares, apesar de todo o esforço para envolver todos os proprietários, já passaram quatro anos e o facto é que não ultrapassámos os 60% de identificação cadastral.
É muito difícil. Porquê? 60% do território está na posse de heranças indivisas ou não resolvidas. Ou seja, eu não só desconheço o proprietário como o proprietário está desaparecido ou já morreu, se calhar, há quatro gerações.
E o que pode o Estado fazer?
CBL – O Estado tem que desenvolver uma ação rápida e decisiva deste cadastro. E tem de criar um desincentivo. Temos de pôr o IMI rústico de acordo com uma rentabilidade média. Quem produzir e gerir é beneficiado; quem não produzir ou não gerir é prejudicado. Tem de haver um ónus financeiro efetivo.
Todo o modelo atual passa pela existência de uma autorização prévia por parte de um proprietário. Para se conseguir intervir tem de se passar por um processo burocrático, tendo em consideração o princípio de proteção da propriedade privada. Nós hoje temos meios mecanizados para limpeza da floresta. Para limpar um monte e para fazer as faixas de proteção primárias e secundárias, não posso estar a passar por toda uma saga de autorizações prévias. O Estado, ou uma entidade concessionária, tem de entrar imperativamente e coativamente no território para limpar em grandes extensões. É a única forma que torna operações de limpeza e de regularização florestal viáveis.
Só um citadino é que diz que as multas das limpezas da floresta têm de ser agravadas… Se forem ver quanto é que levam para limpar um hectare, vão ver que o custo é totalmente proibitivo. Agora, se tivermos uma operação em larga escala, ainda mais quando temos os fundos do PRR que têm de ser urgentemente utilizados para esta finalidade, a situação já se torna viável.
Aquilo que ardeu, na última semana, é sucata arbórea, não é floresta! Estamos a falar de floresta abandonada. Albergaria arde de nove em nove anos ou de onze em onze anos. Pedrógão vai arder no próximo ano, ou daqui a dois anos, que é o novo ciclo de incêndios.
Como é que o Estado pode ter essa “ação pública autoritária”, sem violar o direito à propriedade privada?
CBL – As funções do Estado são essencialmente duas: minimizar risco e promover a igualdade e a coesão. A questão da floresta entra nos doi
dos. Isto é mais do que suficiente para garantir uma justificação social para ultrapassar a barreira da propriedade privada. O sujeito não está a cumprir a parte do seu contrato social que permite que o Estado lhe garanta essa proteção. Se ele não está a cumprir, é legítimo que o Estado, numa ótica de minimização do custo, dos riscos para terceiros e da redução das externalidades negativas, intervenha no seu território. Obviamente sempre com base numa notificação e um conhecimento prévio.
O proprietário está morto em 60% das circunstâncias. O terreno está ao abandono em cerca de 90% das circunstâncias. O Estado diz que vai aplicar multas. A quem? Onde? E mesmo que aplique multas ao desgraçado que está lá, se ele vai tentar limpar a sua microparcela de um hectare, vai pagar 5 ou 6 mil euros por hectare para limpar…
Nesse modelo, seria o Estado a arcar com os custos de limpeza?
CBL – O Estado gasta 520 milhões por ano na máquina de ataque florestal. Temos 300 milhões de euros no PRR para estas operações. O Estado tem culpa no cartório. Primeiro, não fez o cadastro, que é a sua principal função ao nível da organização e proteção da propriedade privada. O Burkina Faso fez isto em 2019. Segundo, toda esta estrutura de eucaliptos resultou da campanha, proposta pelo Estado nos anos 60, de rentabilidade e de promoção da indústria florestal. Terceiro, o Estado tem um modelo de incentivos e de desincentivos completamente invertido e ainda por cima acabou com toda a estrutura dos guardas florestais e de apoio florestal.
Em relação à vigilância, uma das opções para colmatar a falta de meios seria também utilizar drones?
CBL – Existe um sistema bastante funcional que são câmaras, criadas pela INESC TEC, que cobrem uma grande área do país e cujo sistema de vigilância está centralizado na GNR. Esse sistema é bastante útil, só que tem algumas limitações, nomeadamente alguns falsos positivos. O que eu estava a defender era criar um complemento com drones, precisamente para identificar esses falsos positivos.
O drone também pode servir de dissuasor em termos de identificação do que é que se passa na floresta e de identificação de fontes de ignição. E não é nada oneroso. É uma questão de alterarmos toda a metodologia de vigilância. O drone funciona um pouco como os submarinos no mar. Se nós temos alguém que quer criar alguma ignição de forma ilícita e que pode estar a ser vigiado sem saber, isso também é um elemento de dissuasão.
Se eu posso fazer isso em ambiente marítimo e em ambiente de guerra, porque é que eu não posso fazer isso para a floresta quando temos aqui um problema de guerra interna, que é a luta contra os incêndios? Temos todos os meios disponíveis para o fazer.
Podemos ter mais meios humanos, ou seja, guardas florestais, quando é possível ter uma estrutura de receita que pague engenheiros florestais. A estrutura de receita vem precisamente da reforma do IMI Rústico. Se eu fizer a reforma do IMI Rústico, consigo gerar mais do que o dinheiro suficiente para essas funções. E posso criar uma contribuição especial sobre atividades de risco mais agravado, nomeadamente as zonas abandonadas e que estão cheias de sucata arbórea.
Temos de ter uma definição muito concreta do que é que é floresta de produção e floresta de conservação. Temos de criar condições para o crescimento económico das atividades florestais e uma conectividade com a parte turística, a de produção energética e a parte da indústria florestal, para criar efetivamente valor.
Temos 94% do território subaproveitado, que é precisamente o território do interior, que não tem uma ocupação urbana. Uma floresta gerida não arde. As florestas geridas das empresas de produção de papel raramente são afetadas pelos incêndios, porque efetivamente têm um modelo de proteção.
Quando defendo um modelo mais musculado é porque sei que não posso estar à espera do cadastro para resolver este problema. Como eu estou a ver que isto não vai resolver-se nos próximos tempos, temos de passar para o modelo musculado e usar a autoridade pública para intervir.