Portugal conseguirá emendar o falhanço na ferrovia? (parte I)

Espanha criou de raiz a maior e melhor rede ferroviária europeia de Alta Velocidade. Portugal permaneceu na estaca zero

O entusiasmo governamental colocado no recente anúncio dos 45 milhões de euros em apoios autorizados a Portugal pela Comissão Europeia destinados aos operadores de transporte ferroviário de mercadorias – nove milhões de euros anuais, durante cinco anos, com base no valor de 0,07 euros por tonelada/km, geridos pelo IMT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes – seria expressão das melhores intenções para incentivar, até 2029, a transferência do transporte de mercadorias da rodovia para a ferrovia.

Este foi o ‘atrativo pecuniário’ que o ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, encontrou para promover a transferência das mercadorias transportadas por veículos motorizados, sobretudo camiões e carrinhas comerciais, que circulam nos 15.050 km da Rede Rodoviária Nacional – dos quais, 14.860 km explorados pela IP – Infraestruturas de Portugal –, para os comboios de mercadorias que circulam numa rede ferroviária que só dispõe de 563 km em via dupla, sendo operados na sua esmagadora maioria em linhas de via única com uma extensão de 1.916,7 km. Ou seja: com este estímulo, Miguel Pinto Luz pretende transferir para comboios as mercadorias transportadas pelos camiões que circulam nos 15 mil kms de estradas existentes em todo o território, sabendo-se que a rede ferroviária em exploração é maioritariamente constituída por linhas de via única, e apenas tem os referidos 1916,7 kms, equivalentes a 12,7% da extensão da rede rodoviária do país.

Ainda há outro problema mais complicado: a “coluna vertebral” ferroviária portuguesa – a Linha do Norte – atingiu um elevado grau de congestionamento, sendo improvável que até 2029 comporte um grande aumento do tráfego de mercadorias.

Assim, este Verão, a 2 de julho, o comunicado do Governo em que Miguel Pinto Luz anunciou estes apoios, defendeu que “o transporte ferroviário de mercadorias é central para uma estratégia de logística nacional”, considerando que “este setor tem sido deixado para trás”. Adiantou o ministro que “o Governo reconhece a sua importância e está focado em promover o seu crescimento e robustez”. E admitiu que “esta medida ganha especial relevância quando o transporte ferroviário de mercadorias continua sem recuperar os valores de há cinco anos, tendo registado no ano passado 5,4 milhões de quilómetros, um valor ainda abaixo dos 5,8 milhões de quilómetros em 2019”.

Sob o ponto de vista do discurso político, a abordagem de Miguel Pinto Luz não difere muito da comunicação oficial seguida pelos anteriores governos socialistas, desde 2015 – embora se possam repescar declarações semelhantes mais antigas –, cujo resultado prático pouco ou nada alterou, nem desenvolveu a atividade dos comboios de mercadorias.

Greenpeace: Portugal encerrou oito linhas de comboio em 23 anos

Vamos por partes. Recentemente a imagem de Portugal como país com grandes limitações ao nível dos transportes ferroviários correu o mundo pela “voz” da organização ambientalista Greenpeace, quando divulgou um estudo que refere que em 23 anos – de 1995 a 2018 –, a dimensão da rede ferroviária nacional sofreu uma redução de 18%, o que corresponde à terceira maior diminuição da infraestrutura ferroviária efetuada entre os 27 países da União Europeia, acrescidos do Reino Unido, da Noruega e da Suíça.

Citando dados sobre o sector ferroviário europeu, a Greenpeace referiu que, em pouco mais de duas décadas, Portugal encerrou oito linhas de comboio, excluindo 100 mil pessoas do acesso a este modo de transporte.

Lisboa é uma capital europeia sem acesso ferroviário

Mais grave que isso, a organização ambiental esclareceu que Lisboa está no fim da linha da acessibilidade ferroviária europeia, sem ligações de comboio à capital mais próxima, que é Madrid, posicionando-se, por isso, em 37º e último lugar entre as 45 cidades europeias avaliadas quanto à sua acessibilidade ferroviária.

Na ineficiente ligação internacional por comboio, Lisboa fica ‘ex aequo’ com Tallinn na Estónia, com Sarajevo na Bósnia-Herzegovina, Pristina no Kosovo e Skopje na Macedónia do Norte. Segundo a Greenpeace, Lisboa está isolada na Europa ferroviária, muito longe da acessibilidade de Viena de Áustria (classificada em 1º lugar, conectada por 17 ligações ferroviárias diretas a capitais europeias); longe de Munique e Berlim (em 2º lugar, tendo Munique 15 ligações diretas e Berlim 14 diretas); ou de Zurique (em 3º lugar, com 13 ligações diretas); de Paris, Budapeste e Bucareste (em 4º); de Bruxelas e Praga (em 5º); de Riga, Estocolmo, Varsóvia, Amesterdão, Colónia e Hamburgo (em 6º); de Vilnius e Bratislava (em 7º); de Marselha, Barcelona e Milão (em 8º); e de Londres, Luxemburgo, Lyon, Madrid, Roma, Oslo, Llubljana e Zagreb (em 9º).

A IP – Infraestruturas de Portugal refere que as linhas e ramais da rede ferroviária nacional (no total das vias em exploração e não exploradas) têm uma extensão total de 3.600 km (mais precisamente 3.621,6 km), encontrando-se em exploração 2.527 km de ferrovia (70% da rede nacional).

75,8% da rede ferroviária em eploração é operada em via única
Contudo, detalha a IP, esta rede tem 1.916,7 km operados em via única (75,8% da extensão da rede em exploração), 563 km em via dupla (22,2% da rede em exploração) e apenas 48 km têm via múltipla (1,8% da rede em exploração).
Sob o ponto de vista da eficiência ambiental, cumpre esclarecer que a extensão de rede eletrificada abrange 1.794 km, o que corresponde a 71% do total da rede em exploração.

Segundo dados da IP, em 2023 encontravam-se em exploração 563 estações e apeadeiros ferroviários, das quais 292 dedicadas ao serviço de passageiros e 245 com o serviço misto de passageiros e mercadorias, consagrando apenas 12 à atividade especializada no transporte de carga e mercadorias (que são apenas 2,1% do total das 549 estações de passageiros e mistas).

A dimensão da operação de mercadorias servida por estações ferroviárias (245 mistas e 12 exclusivas) parece desde logo reduzida quando comparada com as 292 dedicadas ao serviço de passageiros. Mas se for feita uma correlação com os 431 parques empresariais existentes em Portugal, surge inevitavelmente a dúvida de saber se Portugal terá apostado eficientemente na promoção do transporte ferroviário de mercadorias durante as últimas três décadas (um ‘timeline’ que coincide com o da criação da rede da Alta Velocidade ferroviária espanhola, um projeto nascido do ‘zero’ que se afirmou como o maior da Europa, enquanto no mesmo período Portugal não construiu uma única linha de AV, nem conseguiu montar uma eficiente rede ferroviária de mercadorias que servisse todos os parques industriais do país).

Governos falharam aposta da ferrovia

Centrando uma análise retrospetiva a partir do XXI Governo (de 2015 a 2019, com António Costa como Primeiro-ministro), é fácil recordar que o ministro do Planeamento e Infraestruturas, Pedro Marques, sublinhou sucessivas vezes a aposta de Portugal na ferrovia, elegendo como investimento prioritário a dinamização do segmento do transporte de mercadorias.

Posteriormente, nenhum responsável governamental das infraestruturas de transporte desvalorizou o investimento na ferrovia, destacando-se a ênfase que Pedro Nuno Santos deu aos comboios de carga, propondo até 2050 “dobrar o tráfego ferroviário de mercadorias” (foi ministro das Infraestruturas e Habitação de 2019 a 2023, priorizando o segmento dos comboios de carga sobretudo nos XXII e XXIII Governos, de António Costa).

“Pedro Nuno” pretendeu centrar o esforço orçamental da sua tutela na melhoria operacional do transporte ferroviário, fosse ao nível geral das deslocações pendulares diárias suburbanas, fosse no transporte regional, ou na própria “coluna vertebral ferroviária portuguesa” que é a Linha da Beira Alta (LBA), além da melhoria das condições da linha do Oeste, ou no processo de eletrificação da Linha do Algarve.

O mesmo quis fazer João Galamba (ministro das Infraestruturas entre janeiro e novembro de 2023, altura em que foi exonerado desta pasta no XXIII Governo), e ainda o próprio António Costa (que assumiu a pasta das Infraestruturas, por acumulação de funções, entre novembro de 2023 e abril de 2024), sucedendo-lhe Miguel Pinto Luz em abril de 2024, no XXIV Governo liderado por Luís Montenegro.

Na transição do Governo de maioria de esquerda para o Governo da AD foi “repescado” o projeto da Alta Velocidade entre Porto e Lisboa, com ligação também a Braga-Vigo; foi decidido avançar com o novo aeroporto internacional de Lisboa na área do Campo de Tiro de Alcochete, localizado em parte na freguesia de Samora Correia (município de Benavente) e outra parte na freguesia de Canha (município do Montijo). Supostamente, estes dois projetos vão partilhar a Terceira Travessia do Tejo (TTT), importante quer para a AV ferroviária, quer para o acesso a Lisboa dos passageiros do aeroporto (e vice-versa).

No entanto, o facto de Portugal ter apenas 48 km de ferrovia múltipla e só 12 estações exclusivamente dedicadas ao transporte de mercadorias dá que pensar sobre o empenho estratégico nos comboios de mercadorias, sabendo-se que na ferrovia de via única – que é dominante em Portugal –, não podem circular coordenadamente os comboios de passageiros mais velozes, os InterCidades e os regionais e os comboios de mercadorias.

Continua na próxima edição

Jornalista