Um advogado no banco dos réus

Uma justiça que é tão onerosa para os contribuintes como para os agentes judiciários

O arguido teve pena do juiz. Sentado na cadeira onde normalmente se sentam os seus clientes, desta vez, o arguido, um advogado de nome e boa reputação, percebia que era mais difícil – mas muito mais difícil – julgar do que defender ou acusar.

A lei, a bizantina lei portuguesa, era mesmo assim. Um cidadão cumpre a obrigação constitucional de denunciar um grave atentado contra o ambiente: chama a polícia; participa às autoridades administrativas; apela nas redes sociais à participação pública na denúncia. A indignação é geral, os fiscais intervêm, a queixa segue para tribunal.

Um ano depois, o pacato cidadão anda na sua vidinha, quando surge uma notificação da PSP para prestar declarações na esquadra X. Assume que o processo resultante da sua queixa está a andar. Mas não. Chegado à esquadra, diz-lhe o agente apressado que ele, o cidadão cumpridor, tinha sido constituído arguido por ofensas à reputação da sociedade unipessoal Y. E pergunta-lhe se quer, nessa qualidade, prestar declarações.

Na verdade, trata-se de um interrogatório de arguido. O cidadão, advogado com quase meio século de experiência, quer conhecer a participação. “Não pode”, diz o agente. “O inquérito está em segredo de justiça”. O cidadão declara no processo não querer prestar declarações.

Mas a lei é severa, especialmente para os que se atrevem a defender o interesse público. E o arguido é sujeito a termo de identidade e residência. Dali em diante, quando quiser deixar a sua residência habitual para passar uns dias de férias ou de trabalho, no país ou no estrangeiro, o arguido tem de notificar a autoridade policial e levar ao processo notícia do respetivo paradeiro. O estigma de suspeito passa a ficar-lhe colado ao nome.

Decorrem uns meses. O arguido é notificado de que a Procuradora da República se abstém de o acusar pelo crime que a empresa lhe havia imputado. Não que fosse relevante a circunstância de a empresa ter sido entretanto objeto de uma contra-ordenação e de o seu atentado ao ambiente ter sido embargado pela respetiva câmara municipal. A magistrada do Ministério Público fora forçada a um subtil exercício de hermenêutica jurídica que a levaria a concluir que a lei não punia a conduta do arguido. Este julgou, temerariamente como adiante se verá, que acabara ali a sua mortificação.

Mas havia ainda uma surpresa. Semanas depois, surge a acusação particular da empresa. E o arguido, para evitar o julgamento – é verdade, basta uma acusação particular para qualquer cidadão cumpridor se sentar no banco dos réus – é forçado a requerer a abertura da instrução. E apresenta as suas razões: os factos por ele denunciados são verídicos, a assistente foi punida pelas autoridades administrativas, etc. Afinal onde está o crime do arguido?
Mas isso, por lei, tem de ser discutido no chamado debate instrutório. E assim, arguido, procuradora, advogados e um juiz obsessivamente rigoroso vão debater, em duas sessões, os factos e o direito.

Concluída a primeira sessão, o juiz determina que a sua decisão seja anunciada na sessão seguinte. O que, diligentemente, acontece uma semana depois. O juiz decide não haver fundamento para se proceder a julgamento. O caso é arquivado. Um juiz competente, uma procuradora erudita e uma advogada muito experiente tornaram possível uma decisão justa num processo que a lei não deveria permitir.

Umas contas por alto indicariam um custo para o Estado de mais de 20.000 euros (outro tanto podem ter custado as diligências de denunciantes e arguido).

De quem é a culpa desta justiça que parece alheia a considerações de eficiência, de custos, de simplicidade? Uma justiça que é tão onerosa para os contribuintes que a pagam como para os seus agentes judiciários, obrigados a um formalismo exigente e obsoleto.

O leitor mais atento perguntará: e o processo judicial resultante da queixa contra os autores do atentado ao ambiente? Ah, esse! Anda perdido num qualquer tribunal. Quatro anos depois, o queixoso (o tal arguido) ainda não foi sequer chamado ao processo para descrever o que se passou.

Advogado e Presidente da associação ProPública – Direito e Cidadania