O “Dilema de Malaca”, rotas marítimas alternativas e o Canal Kra

A China está a diminuir a dependência do Estreito de Malaca por receio de bloqueio naval.

Como já vimos em anterior artigo, um dos grandes receios de sucessivas lideranças da R. P. China é o chamado “Dilema de Malaca”, o medo de que, em caso de conflito aberto com outras potências, seja imposto um bloqueio naval em relação a produtos provenientes de ou com destino à China, via Estreito de Malaca (por onde passam 90% de todo o comércio externo chinês).

Para mitigar este receio, a China tem procurado diminuir a sua dependência do Estreito de Malaca através de vários novos corredores terrestres; apenas alguns estão operacionais mas, mesmo quando todos estiverem a funcionar, permitem dispersar o risco embora só parcialmente o mitiguem. Por muitos corredores terrestres que sejam criados (incluindo uma série de oleodutos e gasodutos), o transporte marítimo continuará a ser preponderante no comércio internacional entre o Extremo-Oriente e a Europa.

O Estreito de Sunda e os Estreitos de Lombok & Makassar

Há presentemente rotas marítimas alternativas ao Estreito de Malaca. O Estreito de Sunda é mais difícil de navegar, devido a fortes correntes, com bancos de areia, tem uma profundidade mínima de apenas 20m em partes de sua extremidade nordeste, e há obstruções artificiais, como plataformas petrolíferas, ao largo da costa de Java. Em suma, a estreiteza e a baixa profundidade do Estreito de Sunda tornam-no inadequado como passagem para navios grandes e modernos.

Os Estreitos de Lombok e Makassar são mais facilmente navegáveis, embora sejam uma rota mais longa, o que pode aumentar os custos de frete (US$ 84 ~ US$ 220 mil milhões / ano, de acordo com a RSIS). Os estreitos de Lombok e Makassar são considerados a rota alternativa mais segura para os superpetroleiros.

Para garantir a utilização regular destes estreitos, a China precisa de manter um bom relacionamento com a Indonésia.

O Canal Kra

O Dilema de Malaca está também na origem de um ambicioso projeto para criar uma rota alternativa entre o Pacífico / Golfo da Tailândia e o Índico / Mar de Andamão: o Canal Kra (também conhecido como o “Canal Tailandês” ou o “Canal do Istmo Kra”); tem sido uma ideia de projeto desde, pelo menos, 1974, embora o monarca tailandês Narai, o Grande, já tivesse encomendado um estudo sobre a sua viabilidade em 1677. Este canal, de algum modo similar aos do Suez e do Panamá, seria feito na parte tailandesa da Península Malaia, com várias localizações sugeridas, e permitiria poupar c. 1200 km e 2 ~ 5 dias de viagem na rota marítima atual entre o Extremo Oriente e a Europa, com uma poupança estimada [para um petroleiro de 100.000 dwt] de US$ 350.000 por viagem. Os carregamentos a granel (por exemplo, petroleiros ou graneleiros de produtos de base agro-alimentares), fretados para viagens diretas do porto de origem ao porto de destino, serão os maiores beneficiários. Grandes navios porta-contentores que precisam fazer paragens frequentes ao longo da rota podem não beneficiar tanto – a capacidade dos navios pode não ser suficientemente utilizada em paragens em portos no Sudeste Asiático. A Tailândia pode beneficiar das taxas de portagem do canal (embora o custo de uso do canal seja um fator-chave na sua utilização), taxas de instalações portuárias e desenvolvimento na área circundante, com a criação de centros logísticos e portuários relevantes, o que canibalizaria parte do negócio atual de Singapura nesses setores.

Permitiria também diminuir a exposição à pirataria no estreito de Malaca. Criaria ainda relevantes pólos logísticos e portuários, que canibalizariam parte do negócio atual de Singapura nestes setores. E dificultaria a imposição de um bloqueio naval ao estreito de Malaca, sobretudo se existirem bases navais militares chinesas nas Ilhas Coco (no Mar de Andamão) e no porto de Kyaukpyu como deverá suceder na sequência de acordos entre Myanmar e a R. P. da China. De qualquer forma, com volumes de tráfego projetados para exceder a capacidade do Estreito de Malaca até 2030, este novo projeto forneceria uma alternativa para garantir um fluxo contínuo de mercadorias. Em maio de 2015 foi celebrado um Memorando de Entendimento entre a China e a Tailândia sobre o Canal Kra. A China parecia interessada em investir em projetos de infraestrutura regional, como o Canal Kra, como parte de sua BRI. E o governo tailandês liderado por P. Chan-o-cha havia promulgado uma estratégia nacional de desenvolvimento de duas décadas que colocava a ênfase na importância das iniciativas regionais de conectividade. Porém, o projeto não avançou devido a disputas políticas internas na Tailândia, ao elevado custo do mesmo, a oposição na Tailândia a que o canal seja gerido pela China ou por empresas chinesas, e a pressão de outros países (EUA, Índia e Singapura).

A Ponte Terrestre Tailandesa

Após anos de debate interno, o conceito de um canal navegável ligando o Golfo da Tailândia e o Mar de Andamão foi abandonado pelo governo tailandês em 2020. O sonho de um Canal Kra foi substituído por uma Ponte Terrestre Tailandesa, com dois portos de alto mar [a serem construídos] em Chumphon e Ranong, ligados por estradas, ferrovias e oleodutos (100 km) para conectar o Golfo da Tailândia e o Mar de Andamão, e localizados bem a norte dos projetos conhecidos para o Canal Kra. Esta rota terrestre evitaria grandes custos envolvidos na escavação de um canal, como resíduos ambientais, e, se feita mais ao norte da Península (como planeado agora), reduz os riscos de insurgência e agitação das províncias [predominantemente muçulmanas] do sul da Tailândia.

O governo tailandês estimou o custo desta ponte terrestre – 1 bilião de bahts (US$ 29 mil milhões) – é de aproximadamente 1/2 dos impressionantes US$ 55 mil miilhões projetados para fazer o Canal Kra. Os portos de águas profundas em Ranong, no Mar de Andamão, e Chumphon, no Golfo da Tailândia, podem custar 630 mil milhões de bahts, de acordo com o Departamento Tailandês de Política e Planeamento de Transporte e Tráfego. Os investidores estrangeiros poderão deter mais de 50% em parcerias com empresas locais na construção dos portos e infraestruturas conexas. Será atribuída uma concessão de 50 anos ao consórcio vencedor, que poderá incluir armadores, operadores logísticos, gestores portuários, promotores imobiliários e investidores industriais. De acordo com o governo tailandês, este projeto de ponte terrestre tailandesa ajudará a criar 280.000 empregos e impulsionará a taxa de crescimento anual do PIB da Tailândia para 5,5% quando estiver totalmente implementado (2,6% em 2022). Se um estudo de viabilidade atualmente em curso receber luz verde, a Tailândia planeia realizar um concurso público internacional no segundo trimestre de 2025 e os trabalhos poderão começar em 2030. O governo tailandês está a promover este megaprojeto para investidores globais, tendo já feito apresentações para investidores na China, Arábia Saudita, Japão, EUA e Alemanha.

A China ainda não se manifestou em relação a este projeto de ponte terrestre, parecendo ter preferência por um canal navegável. Desde logo, porque a ponte terrestre não resolve o problema quanto ao transporte de petróleo e gás (e, possivelmente, de outros produtos de base), cujos navios continuariam a ter que passar pelo Estreito de Malaca. No entanto, as autoridades tailandesas dizem que a gigante chinesa da construção China Harbor Engineering Company (CHEC) manifestou interesse no projeto da ponte terrestre.

Não obstante todas estas iniciativas, a dependência do comércio internacional da China do transporte por via marítima continua muito elevada, razão pela qual as autoridades chinesas vêm procurando rotas marítimas alternativas de e para a China – rotas via Pacífico e canal do Panamá e rotas do Ártico. Assunto a que voltaremos.

Consultor e ex-secretário de Estado da Internacionalização