Nos últimos tempos, tenho estado particularmente preocupado com o estado do serviço (edo sistema) nacional de saúde (SNS) em Portugal. Decidi, assim, tentar perceber o que se passou nos últimos 10-15 anos e como chegamos até aqui. Não sou um especialista em saúde, mas gosto de olhar para dados e tentar perceber como evoluiu o debate político sobre a matéria. O destino do Serviço Nacional de Saúde há muito que tem sido traçado, mas sem que nenhum dos partidos que tem formado governo o admita ao eleitorado.
Recuemos até ao governo de Pedro Passos Coelho, onde figurou Paulo Macedo como Ministro da saúde entre 21 de junho de 2011e 30 de outubro de 2015. Sob os constrangimentos da troika havia um mandato (não do povo Português, claro) para reduzir o investimento e os custos com o SNS. A 15 de Marco de 2012 na tvi24, já o então Secretario-Geral do PS António José Seguro, acusava o ministro de “estar a afastar os Portugueses do SNS”, ao que o Ministro rebatia com números de consultas, urgências, e internamento de idosos record durante os meses de inverno, demonstrativos segundo o ministro, que o sistema mantinha capacidade de resposta.
Prometia ainda o ministro que todos os Portugueses teriam médico de família até ao final da legislatura – algo que ainda hoje está longe de estar resolvido. Em 2014, Constantino Sakellarides, presidente para a Fundação da Saúde, criticava o ministro da saúde por “transferir as responsabilidades para o ministério das finanças”.
Apesar da evidente decadência do SNS, o governo tinha um argumento de peso: a pesada herança deixada pelo Governo Socialista de José Sócrates. Mas apesar desse argumento ser verdadeiro e justo, a pergunta que se imponha era se o governo e ministro da saúde de então concordavam com um “sistema nacional de saúde de acesso universal e tendencialmente gratuito” conforme constitucionalmente consagrado, ou se, pelo contrário, acreditavam no crescimento significativo de um sector privado de saúde que não apenas complementasse, mas fosse central no sistema de saúde em Portugal.
Se a visão fosse uma tentativa de manter um sistema essencialmente público e universal, então, teria de ser avaliado de que forma o SNS teria de se reformar para manter esse objectivo. Desinvestir no SNS e abrir as portas ao crescimento de um sector privado sempre teve um problema de legitimidade que era difícil de ultrapassar. Mas como diz a velha máxima: nunca se deve desperdiçar uma boa crise. Um relatório do BCP e da Augusto Mateus & Associados, mostra que em 2015, a despesa corrente com saúde em Portugal era de 66% do total, o que comparava com 76% da média da OCDE, uma diferença de 10% e que em 2007 era de apenas 3%. Ao mesmo passo, as despesas das famílias com saúde (“out of pocket”), eram de 28% em 2015, comparando com 18% para a média da OCDE.
Entre 2011 e 2014, o número de estabelecimentos de saúde privados com capacidade de internamento cresceu exponencialmente, mais do que duplicando para 169 empresas. Não há dúvidas que os investidores privados viram uma oportunidade de investimento durante este período. Em 2015, os proveitos dos quatro principais operadores hospitalares privados, incluindo PPPs, eram já de cerca de 1,27 mil milhões de Euros. Em 2023, decorridos os anos de governo socialista, só a Jose de Mello Saúde reportava 1,3 mil milhões de euros, mais do que triplicando os proveitos em 8 anos.
Em Julho de 2018, decorridos 3 anos dede que assumiu a pasta da saúde, Adalberto Campos Fernandes falava em resultados do SNS “positivos” e acusava incógnitos por sistematicamente “empolarem situações pontuais” para afastar as pessoas do SNS. Isto ao mesmo tempo que também dizia que “somos todos Centeno”. Em Dezembro de 2018, temeu-se que o crescimento do sector privado fosse parado por Marta Temido.
Escrevia António Costa (o jornalista), no ECO em relação à acção da ministra: “Primeiro, foi a lei de bases da saúde, revista e diminuída relativamente à proposta apresentada por Maria de Belém e ratificada por Adalberto Campos Fernandes. Assumiu a ideologia, afastou o sector privado de saúde e quer transformá-lo apenas num sistema complementar do sector público”. Estas afirmações não encontram reflexo nos números dos principais grupos privados de saúde que continuaram a crescer significativamente, durante a vigência de Temido no cargo de ministra. Manuel Pizarro continuou simplesmente a presidir ao caos no SNS, e ao crescimento do sector privado.
O que tudo isto significa? Significa que, claramente, e apesar das retóricas de PS e PSD, o SNS esta à deriva. Todos os ministros juraram proteger e preservar o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Nenhum o fez. E no meio disto, perderam-se oportunidades de o reformar verdadeiramente.
Em Setembro de 2014, ainda durante a liderança de Paulo Macedo, foi tornado publico o relatório “Um Futuro para a Saúde”, projecto comissionado pela Fundação Calouste Gulbenkian, e que integrou diversos especialistas nacionais, tendo sido coordenado pelo Lord Nigel Crisp. Lord Crisp foi Permanent Secretary for Health no Serviço Civil Britânico e CEO do National Health Service (NHS) no Reino Unido. O relatório foi apresentado aos partidos no Parlamento. Nesse relatório reconhecia-se desde logo que “um apoio forte ao Serviço Nacional de Saúde pelo público e pela maioria dos profissionais médicos, que são clara e frequentemente motivados pelo sentido de serviço e benefício ao público”.
Apesar de haver um mandato da população Portuguesa para a preservação de um SNS universal e tendencialmente gratuito quando dele se precisa, os governos que se seguiram nada fizeram para que esse objectivo fosse alcançado, pelo contrário. O relatório falava em dois grandes vectores de acção. O primeiro, sugeria actuar aos nível dos determinantes sociais da saúde como são a educação, emprego, habitação e o ambiente, apontando para uma integração das políticas públicas nesta matéria.
O segundo eixo, prendia-se com a reforma do Serviço Nacional de Saúde (SNS) propriamente dito. Deste segundo eixo destacavam-se um SNS com hospitais mais focados e eficientes; com uma transferência de competências para as autarquias locais e um reforço muito significativo das unidades locais de saúde e da disponibilização de serviços na comunidade, nomeadamente, direccionados a população idosa com problemas crónicos.
A tecnologia emergia como um facilitador deste modelo garantindo eficiência e inovação, ao mesmo tempo que se preconizava um investimento maior na prevenção e promoção da saúde. Esta visão não só estava bem articulada como tinha lógica interna e coerência, mas nem o final de mandato de Paulo Macedo, nem os três anos seguintes de Adalberto Campos Fernandes mostraram qualquer vontade na sua implementação.
As Unidades de Saúde Familiar (USF) continuam muito aquém do papel que podem desempenhar, 14.7% de Portugueses continuam sem médico de família, e a rede de cuidados continuados “tem um atraso de quase 10 anos nas metas definidas”, segundo o Tribunal de Contas.
Apesar de no seu mandato não ter dado atenção ao relatório da Fundação Calouste Gulbenkian, Adalberto Campos Fernandes, Ministro da Saude do PS, dizia precisamente na rubrica “Sim ou Não” do Portugal Amanha de Outubro de 2024, que “as políticas devem ser science based”. Pois sim!
O único aspecto que parece consistente entre governos PSD e PS e o desinvestimento no SNS, o atraso na sua reforma, e o crescimento do sector privado de saúde. Aqui chegados de forma pouco democrática – porque o modelo que se esta a desenvolver foi feito a revelia da vontade dos Portugueses – importa avaliar dois aspectos fundamentais da saúde em Portugal. O primeiro, é se de forma global, os indicadores de saúde da população estão hoje melhores do que há 15 ou 20 anos. O segundo, é se existem diferenças significativas entre quem acede a cuidados privados e a quem só pode aceder a cuidados públicos.
Convinha que alguém clarificasse para onde caminha o SNS.
Filipe Morais, Professor de Governance, Henley Business School, Reino Unido, e Partner na AMROP