A Administração Pública vai passar a ser digital? Saiba o que muda

Burocracia, lentidão e falhas digitais ainda são marcas da Administração Pública. Com a promessa de uma revolução tecnológica, o Governo lança planos ambiciosos para digitalizar os serviços públicos. Mas será que é desta que a modernização sai do papel? A presidente da AMA garante que sim e explica o que vai mudar nos próximos tempos.

Burocrática, lenta e ultrapassada. São as palavras mais “simpáticas” utilizadas pelo cidadão comum para descrever os serviços da Administração Pública, após horas em filas numa repartição das Finanças ou ao esbarrar na exigência de documentação sem fim – quase sempre em formato físico.

É isso que o Governo “promete” mudar ao longo dos próximos anos. Mas será que é desta? O plano do Executivo de Montenegro começou logo de forma controversa, com a exoneração do Conselho Diretivo da Agência para a Modernização Administrativa (AMA) presidido por João Dias, em fevereiro de 2024. Em causa estaria o «incumprimento de 70% das metas e marcos intermédios previstos no PRR para 2023, em particular, na abertura de novas Lojas e Espaços do Cidadão, com potencial impacto nas metas de desembolso previstas para 2026». Meses depois, toda a direção acabou por ser substituída, ficando Sofia Mota a liderar a Agência até hoje.

Recorde-se que a AMA, tutelada agora pela ministra da Juventude e Modernização, Margarida Balseiro Lopes, foi criada em 2007, e responsável pelo Programa ‘Simplex’, que, recentemente lançou um novo Cartão de Cidadão contactless, que pode ser usado como bilhete em transportes públicos ou na abertura de contas bancárias online ou ao balcão.

Agora o Governo propõe uma Estratégia Digital Nacional, com medidas que, garante, vão «simplificar e digitalizar» a Administração Pública e «tornar Portugal numa referência europeia no domínio do digital».

App GOV.PT

O primeiro passo já foi dado em dezembro de 2024, com o lançamento da aplicação Gov.pt, que integra as aplicações digitais do Estado num canal único com 16 documentos, como o Cartão de Cidadão, a Carta de Condução e o Seguro Automóvel.

Criada com o intuito de «modernizar e facilitar o acesso dos cidadãos aos serviços públicos», a ferramenta está disponível de forma gratuita «nas lojas de aplicações para smartphones».

A aplicação permite a adesão à Chave Móvel Digital (CMD) por biometria, garantindo uma autenticação segura, e oferece a possibilidade de realizar assinaturas digitais qualificadas com valor jurídico. Além disso, também é possível a autenticação por QR Code, tanto para serviços online como presenciais.

Segundo o Governo, no futuro a aplicação vai integrar outros serviços, incluindo notificações personalizadas para informar os cidadãos sobre obrigações e eventos relevantes.

«Nos próximos tempos, um dos grandes avanços será a implementação da Autenticação.gov – que utiliza o Cartão de Cidadão e a CMD – como padrão em todos os portais de serviços públicos digitais», avança a presidente da AMA, Sofia Mota, ao Portugal Amanhã.

Estas são apenas algumas das medidas do Plano de ação 2025-2026 da Estratégia Digital Nacional, composto por 49 ações, repartidas entre 16 iniciativas e com um investimento associado de aproximadamente 350 milhões de euros. «Para a sua elaboração foram auscultados cerca de 200 entidades públicas, privadas e terceiro setor, assim como especialistas na área do digital», acrescenta.

Reforço do Simplex

Em 2025, o famoso programa ‘Simplex’ deverá ser reforçado com mais medidas direcionadas à simplificação e digitalização dos processos e serviços do Estado na interação com as empresas.
Está previsto um alargamento do Espaço Empresas no portal gov.pt, tornando-o um ponto único de acesso a informação para as empresas e centralizando informação das várias entidades envolvidas no ciclo de vida das empresas. Além disso, será também centralizado o acesso e consulta de informação sobre candidaturas a fundos comunitários.

Plataforma de Interoperabilidade (IAP)

É talvez uma das maiores queixas dos cidadãos que recorrem aos serviços públicos: ter de fornecer repetidamente os mesmos dados em diferentes organismos públicos. De acordo com Sofia Mota, a Plataforma de Interoperabilidade (IAP) será a solução para o problema. Esta plataforma, «invisível ao cidadão comum», vai permitir a troca de informações entre os diversos serviços e «garantir que as informações fornecidas pelos cidadãos a uma entidade pública possam ser, com a sua autorização, reutilizadas por outros serviços, evitando a duplicação de esforços e simplificando processos».

Ainda dentro do Plano de Ação da Estratégia Digital está a criação de um Catálogo Nacional de Dados, que agregará conjuntos de dados públicos existentes e, se for o caso, passíveis de serem disponibilizados.
Será ainda desenvolvido um plano de criação de espaços comuns de dados setoriais de áreas prioritárias, como a Educação, Saúde, Serviços Públicos, Cultura, Turismo, Mar, e Justiça.

‘ChatGPT Português’

Desde que o primeiro-ministro, Luís Montenegro, anunciou a decisão de criar um ChatGPT Português, chamado ‘Amália’, a medida tem gerado várias reações. Há quem diga que a ferramenta não é necessária e que o investimento de 5,5 milhões de euros é inútil, mas tudo indica que o modelo de linguagem de grande escala (LLM) em língua portuguesa vai mesmo avançar.

E não fica por aqui. Há um conjunto de iniciativas de IA que são parte integrante do Plano de Ação da Estratégia Digital Nacional. Desde logo a implementação de uma Fábrica de Inteligência Artificial, baseada na colaboração entre Portugal e Espanha, com a participação da Roménia e da Turquia.

Esta Fábrica terá infraestruturas físicas e digitais, incluindo a instalação de equipas e serviços de apoio ao desenvolvimento de aplicações baseadas em IA em Portugal, aproveitando os recursos de supercomputação e conjuntos de dados europeus.

«O potencial desta tecnologia poderá acrescentar vários benefícios, como a automatização de processos, aumento da rapidez de resposta às necessidades dos cidadãos, garantindo o acesso imediato à informação – não só na relação direta com o cidadão, como ocorre com a Assistente Virtual do gov.pt, bem como no apoio ao funcionário que presta o serviço», explica Sofia Mota. E sublinha: «a eliminação da burocracia é um trabalho contínuo que necessita de apoio de instrumentos financeiros futuros para apoiar as entidades públicas».

Polo Colaborativo

Outro dos passos do plano será o desenvolvimento e lançamento de uma plataforma digital que sirva de ponto de encontro entre a Administração Pública, empresas e entidades do sistema nacional de inovação. O objetivo da plataforma é permitir a submissão de desafios e de soluções, garantindo um “match” entre as entidades envolvidas e suportar os processos de compras públicas de inovação.

Engloba ainda o desenvolvimento do Hub colaborativo, que incluirá um programa de acompanhamento da Administração Pública, instituições de interface, Instituições de Ensino Superior, empresas e startups que apoie na identificação de fontes de financiamento tanto a nível nacional quanto a nível europeu, visando a escalabilidade e potencial exportação das soluções e promovendo a criação de novas empresas e modelos de negócio.

5G em todo o país até 2030

Para tudo isto, é preciso uma infraestrutura digital moderna. Principalmente, com metas ambiciosas como a de chegar a 2030 com 100% do país em áreas povoadas coberto em redes 5G de alta velocidade, sendo que atualmente são 98%. Ou também pôr as empresas a adotar serviços de computação em nuvem. Atualmente temos apenas 32,3% e o objetivo são 75% até 2030.

Quando às infraestruturas tecnológicas na Administração Pública, Sofia Mota refere que um dos projetos mais relevantes é o portal único, o gov.pt, e a criação de novos módulos para suporte de operações omnicanal. «Este projeto permite a integração com serviços e a adoção de novos padrões de design, como o ‘Ágora Design System’, que vai melhorar a interface e a experiência do utilizador nos serviços digitais», explica.

E os dados estão seguros?

Nem tudo são flores na transição digital. Com a crescente digitalização de serviços públicos, aumenta também a preocupação com a proteção de dados dos cidadãos. Recorde-se que no dia 10 de outubro de 2024, a própria AMA foi alvo de um ciberataque que afetou diversos serviços e aplicações do Estado – entre elas o site Gov.pt.

Na altura, a AMA contratou a tecnológica Claranet, por ajuste directo, por cerca de 193 mil euros, para implementação de medidas urgentes de segurança, com o objetivo de «evitar novo ataque», segundo informação do Portal Base.

Questionada pelo Portugal Amanhã, Sofia Mota garante que «na sequência do incidente informático estamos também a reforçar a nossa capacidade ao nível da infraestrutura e a melhorar o nosso plano de continuidade de negócio para fazer face às ameaças cibernéticas».

«A segurança tornou-se uma prioridade para a AMA e para todo o setor público. A inteligência artificial poderá também desempenhar um papel fundamental, pois as soluções baseadas em IA permitem identificar vulnerabilidades e ataques cibernéticos com maior eficiência», acrescenta.

Dentro do Plano de Ação apresentado está também o reforço dos mecanismos de segurança e monitorização da Cibersegurança da Administração Pública e a definição e implementação de modelo de suporte técnico e financeiro para resposta a incidentes de cibersegurança.

Para isso, serão identificadas as principais lacunas na resposta das entidades da Administração Pública a incidentes de cibernéticos, bem como as necessidades e recursos humanos, técnicos e financeiros para uma resposta eficaz a esses ataques.

Além disso, propõe-se a criação de um uma ‘Bolsa de Horas’ que disponibilize especialistas em cibersegurança para apoiar entidades públicas em incidentes críticos.

Inclusão Digital

Um dos maiores desafios da transição digital é não deixar os menos capacitados e a população idosa para trás. Portugal regista a segunda maior disparidade na União Europeia entre os níveis de competências digitais da população com educação avançada e aqueles com pouca ou nenhuma educação formal.

Para garantir a inclusão, estão previstos conteúdos pedagógicos para ensinar a utilizar de forma segura os serviços públicos digitais (como a Chave Móvel Digital, Gov.pt e outros serviços).

«A rede de Espaços Cidadão será utilizada para a distribuição de conteúdos pedagógicos e a capacitação e inclusão digital da população, com especial foco na população idosa. Está planeada a criação de um piloto em 20 Espaços Cidadão até ao final de 2025, com expansão para todos até ao final de 2026», explica Sofia Mota.

A representante da AMA garante ainda que continuará a ser reforçado o atendimento físico nas Lojas de Cidadão e Espaços Cidadão, para «garantir uma resposta inclusiva e acessível, independentemente das condições digitais ou locais de cada um».

Mas para que tudo se concretize é preciso que haja também profissionais qualificados para lidar com uma nova realidade mais digital. Para isso, a presidente da AMA refere que «estão já a ser aplicados aos trabalhadores dos Espaços Cidadão e Lojas de Cidadão formações especializados, para que lidem adequadamente com a digitalização e forneçam um serviço de qualidade à população».

Mais de metade tem nível básico ou superior

Ao nível da literacia digital, os dados referem que 29% dos portugueses têm um nível de literacia digital acima do básico, 27% com o nível básico, 24% abaixo do nível básico, 3% sem nível e 18% não utiliza Internet – dados referentes a 2021. Portugal ocupava o 12.º lugar no ranking da UE27 no que respeita à percentagem de indivíduos com literacia digital acima do nível básico (29% em Portugal e 26% na média da UE27).

A literacia digital da população varia também segundo a zona e a região do país. Cerca de 64% dos indivíduos residentes em zonas urbanas verificaram uma literacia digital igual ou acima do nível básico. Já nas zonas rurais do território essa percentagem foi inferior (41%), de acordo com dados da Comissão Europeia.

As regiões da Área Metropolitana de Lisboa e do Algarve registaram a maior percentagem de indivíduos com literacia digital igual ou acima do nível básico (66% e 57%, respetivamente). Em oposição, na região do Alentejo e na Região Autónoma da Madeira registaram-se percentagens mais baixas de indivíduos com literacia digital igual ou acima do nível básico (47% e 49%, respetivamente).