Em 10 de março de 2020, a Comissão Europeia definiu as bases de uma estratégia industrial destinada a apoiar a dupla transição para uma economia digital e ecológica, tornar a indústria da UE mais competitiva a nível mundial e reforçar a autonomia estratégica aberta da Europa. Um dia após a apresentação da nova estratégia industrial, a Organização Mundial da Saúde classificou a Covid-19 como pandemia.
Ao longo dos anos que se seguiram, os dirigentes europeus perceberam que não tinham a capacidade de fabricar produtos básicos e ficou clara a excessiva dependência externa da Europa (principalmente da China).
Mais do que uma necessidade face às crises recentes, como a pandemia e a guerra na Ucrânia, a reindustrialização surge como uma oportunidade para a Europa se afirmar em pontos estratégicos, como a energia, matérias-primas, hidrogénio, semicondutores e baterias.
De acordo com o relatório do Manufacturing and Industrial Policy Forum (MIPF) há quatro áreas principais que devem guiar a reindustrialização da Europa: Sustentabilidade Ambiental, Digitalização e Inovação, Segurança nas Cadeias de Valor e a Capacitação da Força de Trabalho.
INDUSTRIALIZAR PARA COMBATER A POBREZA
Quando a Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável foi adotada, o mundo tinha acabado de sair da crise financeira global de 2007-2008 e as perspetivas económicas pareciam promissoras. A pobreza extrema estava a diminuir a um ritmo sem precedentes e o primeiro Objetivo de Desenvolvimento do Milénio (ODM) – reduzir para metade a taxa de pobreza de 1990 até 2015 – foi alcançado seis anos antes do previsto.
Quase uma década depois, as perspetivas são menos otimistas. As alterações climáticas, a instabilidade geopolítica e a pandemia foram um travão ao progresso. Em 2022, apenas um terço das pessoas saiu da situação de pobreza extrema em comparação a 2013. Cerca de 10% da população mundial vive em pobreza extrema e quase 800 milhões sofrem de fome crónica.
Para suprir a procura global de alimentos até 2050, a produção precisa de aumentar 70%. «Os investimentos em práticas agrícolas sustentáveis e infraestruturas moderna são cruciais para transformar o setor agrícola, aumentar a produtividade e gerar empregos», refere o relatório da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial.
As alterações climáticas tornam o cenário ainda mais dramático, estimando-se perdas anuais de 1% do PIB nos países em desenvolvimento devido a desastres climáticos – cinco vezes mais do que nos países ricos.
Para encontrar uma solução é preciso olhar para trás. Historicamente, a industrialização provou ser uma estratégia eficaz para reduzir a pobreza, através da criação de oportunidades de emprego e de produtividade.
Exemplo disso são países como a China e a Coreia. No caso da República da Coreia, as estratégias de industrialização focadas nas exportações, desde os anos 60, resultaram na redução da pobreza e da desigualdade. Da mesma forma, a China tem visto uma redução da pobreza nas últimas quatro décadas, interligada com a sua afirmação enquanto potência industrial.
Durante este período, quase 800 milhões de pessoas foram retiradas de pobreza – quase 75% da redução global da pobreza extrema.
CHINA COMO POTÊNCIA INDUSTRIAL
Enquanto uns avançam, outros ficam para trás. Os dados das últimas décadas sobre desenvolvimento industrial traçam um cenário díspar a nível global. Se por um lado, países na região Ásia-Pacífico se destacaram por ter um crescimento notável em termos de valor agregado da manufatura (VAM) per capita – com a China a liderar o caminho – por outro, na África e a América Latina o crescimento revelou-se muito mais lento. Em 2000, os países de altos rendimentos (PARs) dominavam a participação no VAM global, representando 75% da produção industrial global. Até 2030, prevê-se que países como a China aumentem significativamente a sua participação na produção industrial global.
O relatório prevê que, no futuro, a produção industrial continue concentrada em apenas alguns grandes players, enquanto nos países que mais precisam de crescimento industrial – regiões com maiores níveis de pobreza, fome e desemprego – o progresso industrial será mais lento.
Ainda de acordo com as projeções da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial, até 2030, se nada for feito, a China deve afirmar-se como a maior potência industrial global, concentrando 45% da produção, um salto surpreendente face a 2000, quando tinha apenas 2%. Já os Estados Unidos da América arriscam reduzir dos 25%, em 2000, para 11% em 2030. Um cenário pessimista também na Europa, que vê reduzida a produção industrial em quase todos os países.
Neste cenário, o mundo parece virar-se quase exclusivamente para a China, aumentando a dependência e reduzindo a produção própria, com efeitos nefastos para a economia europeia.
E Portugal? Terá capacidade para afirmar-se neste contexto? No debate Sim ou Não de junho de 2024, Joana Valente, responsável pelas relações internacionais da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), alertava para a falta de meios no país: «Há Estados-membros que têm muita capacidade de apoiar as suas empresas. Portugal não é um deles. Ao nível europeu, devemos bater-nos para assegurar que aqueles que não têm a mesma margem, têm, de qualquer forma, acesso a fundos».
Já Henrique Burnay, sócio da consultora Eupportunity e lobista em Bruxelas, ressaltava que é «preciso ter fábricas para ter indústrias» e critica a excessiva burocracia e regulação. «Não posso ter só serviços. As fábricas ocupam espaço visualmente, não são todas em escritórios com edifícios lindos, mas é isso que dá emprego e isso é importante. Se eu quero ter indústrias tenho de tornar possível a vida das indústrias. Ninguém está a dizer que quer licenciamentos irresponsáveis, mas se for algo que demora séculos, acaba por não ser feito».
COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
Para alcançar a sonhada reindustrialização europeia, o isolacionismo tem de ficar de lado. «Nunca tivemos uma Europa tão francesa, no sentido de que o racional político que temos não é o alemão, que era um racional industrial, é o francês, protecionista. A Europa quer proteger as suas indústrias e o problema é que, muitas vezes, não são as indústrias europeias, são as indústrias de alguns países», alertava Henrique Burnay.
O relatório sublinha a importância de parcerias globais, num mundo interdependente e onde tudo está interconectado. «Os países industrializados devem estar à altura dos seus compromissos com o mundo em desenvolvimento», defende Gerd Müller, Diretor Geral da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial.
Para não deixar tudo nas mãos só de alguns, a organização recomenda a partilha de conhecimento, acompanhar os rápidos avanços tecnológicos e abandonar os modelos tradicionais de desenvolvimento industrial.
«Estamos a ser ultrapassados mesmo nas áreas onde deveríamos ser pioneiros. Agora é que estamos a começar a correr atrás do prejuízo», remata Joana Valente.
diana.gomes@nascerdosol.pt