Estudo e trabalho em Inglaterra há 15 anos e, naturalmente, as comparações são inevitáveis. Uma dimensão particularmente importante em que existe um contraste forte entre Inglaterra e Portugal prende-se com aquilo a que podemos chamar ética do discurso. A ética do discurso é importante, porque está intrinsecamente ligada à qualidade das decisões tomadas.
A tomada de decisão é um processo no qual os atores de determinado fórum ouvem-se reciprocamente, justificam as suas posições de forma razoável, mostram respeito mútuo, e estão dispostos a reavaliar e rever eventualmente as suas preferências iniciais, por via de um processo discursivo sobre a validade de afirmações concorrentes.
Pensemos na Assembleia da República ou num qualquer Conselho de Administração empresarial em Portugal, ou em qualquer fórum deliberativo, para refletirmos sobre a estado e a importância da ética do discurso em Portugal.
A ética do discurso tem como mais proeminente proponente o filósofo e teórico social alemão Jürgen Habermas. As ideias de Habermas sobre racionalidade comunicativa procuram identificar as regras que intuitivamente utilizamos na nossa comunicação para alcançar um entendimento e para argumentar.
Neste sentido, Habermas vê a razão como o processo e as regras pelas quais formamos uma justificação pública. A justificação pública não é mais do que o conjunto de argumentos normativo-morais que utilizamos para justificar perante outro da razoabilidade da nossa posição relativamente a determinado assunto.
Os modos de justificação que usamos nas nossas deliberações políticas e morais, e as formas como determinamos se os argumentos dos outros são válidos, são os fatores-chave para avaliar e determinar o ‘ser racional’. Por que é que isto é importante? Desde logo, porque a ética do discurso é um sinal de maturidade de uma sociedade, que se traduz na qualidade do debate e das decisões.
De uma maneira geral, considero que em Portugal a ética do discurso – a racionalidade comunicativa e capacidade de alcançar entendimentos para o bem comum – está cada vez mais comprometida. Os espetáculos na Assembleia da República falam por si.
Muitos conselhos de administração continuam sem serem capazes de elevar a ética discursiva, interrogando de forma cabal os argumentos da gestão. Mas esta incapacidade é transversal à sociedade portuguesa, desde o clube desportivo e cultural do bairro, à assembleia de condóminos do prédio. Este é um problema das instituições dirão os institucionalistas – dos procedimentos coletivos para garantir o consenso e a deliberação para o bem comum.
Mas a ética discursiva e a racionalidade comunicativa são qualidades do indivíduo, e podem ser aprendidas. Contudo, a educação e formação em Portugal estão ainda longe de treinar os alunos a produzir justificações com base em argumentos sólidos, tanto do ponto de vista moral como político; ainda se pede aos alunos que regurgitem teoria, e não que a apliquem criticamente a situações e problemas da vida quotidiana.
Similarmente, não se ensina aos alunos desde cedo a examinar a estrutura argumentativa de um texto, nem formas de examinar se os argumentos na base das justificações dos outros são válidos. A escola deve ensinar a pensar, deve ensinar a debater, escrutinar, mas também a respeitar e eventualmente incorporar pontos de vista diferentes. Vejo esta capacidade muito desenvolvida aqui no Reino Unido. Tanto nas estratégias pedagógicas e avaliativas das universidades, como nas reuniões e grupos de trabalho em contexto profissional e social. Está institucionalizada. Em Portugal não.
Num contexto de desinformação, inteligência artificial e populismos, desenvolver uma ética do discurso desde cedo fará muito pela democracia e pelo desenvolvimento económico e social do país. A esperança a longo prazo está sempre na educação – só isto é verdadeiramente sustentável. Uma educação que instile nos alunos a confiança, autonomia e pensamento critico para saber aprender e fazer escolhas no respeito pelo bem comum. Se o percurso educativo não estiver desenhado para formar elevada ética de discurso, nada nunca teremos uma sociedade conseguida.
Uma educação que liberte o individuo de dependências. Quanto mais formos capazes de exibir uma ética discursiva, mais confiança e paradoxalmente, mais dúvidas teremos. E isto equivale à sabedoria.
Como bem colocou Karl Weick, teórico organizacional americano: «A ignorância e o conhecimento crescem juntos num mundo fluido, os sábios admitem que não compreendem totalmente o que acontece em determinado momento, porque o que acontece é único a esse tempo. Eles evitam confiança extrema e precaução extrema, porque sabem que ambas destroem o que mais é preciso em tempos de mudança, nomeadamente, curiosidade, abertura, e a capacidade de ser sensível a problemas complexos. Aqueles que são demasiado confiantes evitam a curiosidade porque pensam saber o que precisam de saber. Os demasiado cautelosos evitam a curiosidade porque temem que esta apenas aprofunde as suas incertezas. Tanto o excessivamente confiante, quanto o excessivamente cauteloso são mentes fechadas, o que significa que nenhum faz bons julgamentos. Neste sentido, a sabedoria, enquanto a simultaneidade de crença e dúvida, melhora a (nossa) adaptabilidade». Vamos a isso?