Deve haver mais flexibilidade por parte das empresas em relação aos trabalhadores? Mais liberdade e horários flexíveis podem contribuir para aumentar a produtividade?
Em debate, Ricardo Costa, presidente do grupo Bernardo da Costa, e Rafael Campos Pereira, vice-presidente da CIP e Ass. Indústria Metalúrgica e Metalomecânica (AIMMAP).
Ricardo Costa: “Não devemos ser polícias dos colaboradores”
A minha resposta automática, sem dúvida, é sim. Agora, como é lógico, não nos podemos esquecer que os diferentes setores da economia respondem de uma forma diferente a determinadas medidas e a determinadas práticas de gestão. E o que muitas vezes é válido para os serviços, depois naquela indústria mais de gestão de fábrica, acaba por não ser de uma aplicação tão fácil ou até mesmo não ser possível aplicar no contexto atual.
Em abstrato, eu sou um defensor de que nós não devemos tratar as empresas como centros de dia, onde nós somos polícias dos colaboradores, mas devemos, sim, confiar nas pessoas, capacitá-las para que tenham todas as ferramentas e todo o conhecimento necessário para fazer face às funções que executam.
Depois, devemos dar-lhes a flexibilidade de forma a que elas possam encontrar este equilíbrio tão importante entre a vida profissional, pessoal e familiar. Se isso é feito na questão dos horários, se é feito na questão do trabalho híbrido, depois vai-se adequar à função e ao próprio setor de atividade.
No grupo Bernardo da Costa, apesar de termos trabalho híbrido, há funções em que as pessoas não podem estar em casa, o que cria algum sentimento de desigualdade. Mas é mesmo assim, há coisas que nós não conseguimos controlar.
É fundamental aqui ressalvarmos que isto tem de ser uma aposta nacional de reindustrialização, de cada vez apoiar mais a indústria portuguesa, e o paradigma muda um pouco porque está a ser ainda mais difícil ter aqui um critério, seja ele de flexibilidade horária, seja ele de teletrabalho, que é ainda mais difícil na construção civil.
Na construção civil, por muito que se queira, as pessoas não podem ficar emcasa, nempodem ir para a obra às dez da manhã, quando a obra abre às oito da manhã. Há aqui algumas limitações.
Acho que nós devemos confiar mais nas pessoas e devemos promover esta individualidade na análise que fazemos dos benefícios que as empresas hoje têm que atribuir às pessoas, para se tornarem mais atrativas e para terem as pessoas mais comprometidas e mais motivadas. E, dentro disso, de facto, a flexibilidade horária e a questão do trabalho híbrido surgem à cabeça.
Rafael Campos Pereira: “É preciso cautela no entusiasmo com o teletrabalho”
Concordo em absoluto que cada vez mais boas práticas de gestão apontam no sentido de “máxima liberdade, máxima responsabilidade”. E, portanto, nós temos de responsabilizar os nossos colaboradores, os nossos quadros mais relevantes, os quadros intermédios e todos os trabalhadores em geral em que, eventualmente, possa ser aplicada essa máxima.
Admito que possa existir algum sentimento de injustiça ou desigualdade para grandes universos de trabalhadores, que vêem os restantes terem acesso a uma autonomia muitíssimo superior e eles estão impedidos. Acho que essa questão não deve ser impeditiva de forma nenhuma, mas tem que ser ponderada para não criar um conjunto de constrangimentos dentro das empresas.
Também acho que é preciso ter cautela quando nos entusiasmamos excessivamente com a flexibilidade e o teletrabalho como panaceia para todos os mundos.
Acho que pode ser muito interessante, no sentido de dinamizar, até contribuir para acrescentar mais valor à atividade das empresas. A liberdade é estimulante para a generalidade dos trabalhadores, mas depois também têm de ser salvaguardadas uma série de outras variáveis: a necessidade de integração de novos trabalhadores na empresa, que é mais eficaz se for feita dentro da empresa do que, de uma forma geral, em teletrabalho; apoio; a colaboração; o sentimento de pertença à equipa, tudo isso tem de ser sempre avaliado e considerado.
Não obstante, entendo que o teletrabalho pode e deve ser uma ferramenta muito útil para as empresas, pode ter uma contribuição muito importante para essa articulação entre a vida profissional e a vida familiar dos colaboradores.
Mas chego ao ponto de dizer não, quando isto for transposto para a legislação. Acho que não precisamos de alterar nada. Até seria contraproducente que os trabalhadores pudessem, unilateralmente e incondicionalmente, impor a prestação de teletrabalho contra a vontade das entidades empregadoras. Há circunstâncias que têm de ser avaliadas caso a caso.
A lei prevê que o teletrabalho pode ser estabelecido por acordo escrito entre empregador e trabalhador e eu acho este princípio é equilibrado. Há situações que variam consoante a cultura da empresa e consoante as características pessoais. Tudo isso tem que ser salvaguardado e a liberdade das partes tem que ser protegida, mas sempre com vista a um acordo.
Para termos aumento de produtividade em Portugal, é condição necessária haver essa flexibilidade?
Rafael Campos Pereira – Eu entendo que a flexibilidade é absolutamente indispensável nos dois sentidos. Existem normas imperativas a mais e há leis que, por vezes, protegem o trabalhador, muitas vezes contra a vontade do próprio.
Acho que temos de fazer uma reflexão alargada, nomeadamente ao nível da concertação social (mas não só), no sentido de não estarmos tão entrincheirados, nem os representantes das empresas, nem os representantes dos trabalhadores, e termos mais liberdade dentro das empresas para flexibilizarmos, nos dois sentidos.
Eu compreendo o argumento de quem quis proibir os acordos de banco de horas individual, porque entendem que a entidade empregadora provavelmente tem mais força negocial e pode impor ao trabalhador, condições que o venham a prejudicar, mas não era essa a prática.
Os casos que sejam anómalos devem ser denunciados e sancionados, mas o que acontecia, quando a legislação permitia a celebração de acordos individuais para banco de horas, é que o banco de horas tanto funcionava em benefício das empresas, como dos trabalhadores. Muitas vezes eram os próprios trabalhadores a começar a descansar mais tempo, porque precisavam de faltar por algum motivo e depois compensavam em períodos onde fosse necessário.
Acho que muitas vezes a flexibilidade é um fantasma, estamos muito longe desses tempos em que as relações laborais tinham de assentar numa dialética de luta de classes.
Muitas vezes dizem que é utopia ou demagogia estarmos a falar nisto. Nós sabemos que há entidades empregadoras que não são cumpridoras, como também há muitos trabalhadores que não são cumpridores naquilo que lhes incumbe, mas a verdade é que nós também temos que exigir máxima responsabilidade e liberdade para os trabalhadores, também temos que responsabilizar cada vez mais as entidades empregadoras e as organizações empresariais.
Ricardo Costa – A flexibilidade é fundamental e acho que vai ajudar muito ao aumento da produtividade, mas ela tem de ser bidirecional. Temos uma legislação laboral que cria uma série de amarras, que, muitas delas, até prejudicam mais os trabalhadores do que as próprias empresas. Portanto, esta flexibilidade do lado das empresas e do lado dos trabalhadores é crucial.
O paradigma está a mudar. Antigamente eram as empresas que escolhiam os trabalhadores. Hoje, cada vez mais, são os trabalhadores que escolhem as empresas. Este preconceito de que o poder está todo do lado do empregador ou do empresário é um caminho que está a ser refeito; vai ser totalmente equilibrado. Eu acredito que até vai ficar mais poder do lado do trabalhador do que do lado do empresário, que é a tendência natural no mercado e, no caso português, é reflexo do aumento dos níveis de qualificação dos trabalhadores.
Tínhamos uma população que, na sua grande maioria, tinha níveis de qualificação muito baixos e que aceitavam qualquer coisa para ter um emprego. E isso está a mudar. Da mesma forma que também tínhamos empresários com muito baixos níveis de qualificação e que, felizmente, isso também começa a mudar.
Criar estas amarras, estas questões da obrigação ou proibição não faz qualquer tipo de sentido.
Desde o período da pandemia, há muitos funcionários públicos que se mantêm em teletrabalho ou poucas vezes em trabalho presencial. Qual é a vossa opinião?
Ricardo Costa – Acho que avançávamos muito se, cada vez mais, o público bebesse do privado, a vários níveis. Portanto, se a função desses funcionários públicos lhes permite estar em trabalho híbrido a desempenhar as suas funções e se as suas lideranças intermédias e chefias superiores entendem que não há perda de produtividade, não é por uma questão conceptual de ser funcionário público que tem de estar obrigatoriamente presente no local de trabalho.
É urgente existir uma reforma da administração pública, mas não é por ser funcionário público que tem de estar obrigatoriamente por trás de uma secretária.
No grupo Bernardo da Costa, definimos os dias de teletrabalho consoante a distância de casa à empresa que o trabalhador tem de percorrer diariamente. Se for superior a 25 km por dia são dois dias por semana; se for inferior a 25 km é um dia por semana. Isto tem um reflexo muito positivo no tempo que as pessoas ganham para si próprias. Há um benefício direto para o trabalhador e, nesses casos, sou um defensor do trabalho híbrido.
Já o teletrabalho a 100%, ainda não tenho dados que me permitam dizer que é um benefício. Acho que tem de haver momentos onde as pessoas estejam na empresa, onde se olhem cara a cara e façam os planos de acolhimento a quem entra.
Rafael Campos Pereira – Acho que não é por ser trabalhador de funções públicas que se pode ou não exercer teletrabalho. Agora, grande parte dessas pessoas trabalham para o Estado português a atender o público e essa tem sido uma das queixas dos cidadãos, das empresas, da economia e da sociedade, porque não têm interlocutor fácil nas instituições públicas.
Por exemplo, nas Finanças, há muitos cidadãos e muitas empresas que têm passado verdadeiros pesadelos para poderem resolver problemas que poderiam ser facilmente tratados por alguém que estivesse a atender o público.
O que aconteceu foi que, na sequência da pandemia, houve um conjunto de serviços públicos, e não só, em que os trabalhadores se esquivaram de algum modo ao atendimento ao público e essa é uma forte lacuna que existe, neste momento.
Há um déficit muito grande no atendimento ao público por parte de um conjunto substancial de entidades públicas, nomeadamente as Finanças, a Direção-Geral de Energia e Geologia,o próprio IAPMEI. Há muitas dificuldades. As empresas e os cidadãos querem ir resolver um problema, muitas vezes urgente, e não o conseguem fazer, porque, simplesmente, não há ninguém disponível para atender.
Poderá haver uma alteração legislativa que obrigue ao teletrabalho?
Ricardo Costa – Quero acreditar que nunca vai haver uma legislação que obrigue ao teletrabalho. A atual legislação enquadra-se perfeitamente nas necessidades das empresas, mas também, acima de tudo, nas dos trabalhadores.
Uma legislação que obrigue a um, dois, três dias de teletrabalho, na minha ótica, ao dia de hoje, seria completamente contraproducente.
O Orçamento do Estado para 2025 pode, como ferramenta de política pública, ajudar nestas questões? Por exemplo, é necessário investir mais dinheiro para aumentar a flexibilidade e a produtividade?
Rafael Campos Pereira – Acho que atirar dinheiro não resolve problemas. Têm é que se flexibilizar as regras a todos os níveis, criar mecanismos que dinamizem e estimulem a economia e libertar a economia de algumas tenazes que a constrangem e que a impedem de crescer.
Temos de fazer um esforço (e acho que as empresas têm feito esse esforço nos últimos anos), no sentido de aumentar os salários dos trabalhadores. Não só têm feito esse esforço por sua iniciativa, como também os trabalhadores ganham cada vez mais poder negocial e acabam por também beneficiar de melhores condições de trabalho.
Agora, também é preciso que o Estado faça o seu papel, no sentido de aligeirar esta carga fiscal sobre as empresas e sobre os trabalhadores, que é verdadeiramente insuportável.No imediato admito que a arrecadação fiscal poderia sofrer algum abalo, mas rapidamente iria crescer.
Precisamos de criar mais riqueza para a distribuir. Temos de acabar com este vício insuportável de querer distribuir riqueza que previamente não foi criada. Isso só conduz a mais endividamento para o Estado, para as famílias e para as empresas, e isso é o que nós não queremos.
O OE25 deveria ser um estímulo para o que temos falado, mas como temos três pilares na Assembleia da República que não se entendem, o orçamento que vamos ter será um orçamento de mínimos. E, como já se tem visto, não vai ser, seguramente, estimulante para as empresas.
Ricardo Costa –Infelizmente estamos sempre a distribuir miséria porque não conseguimos criar riqueza. A descida do IRS tem de ser o foco, tem de ser prioritária, porque a carga fiscal que incide sobre os salários em Portugal é, de facto, elevadíssima, para não usar um termo obsceno.
Penaliza muito os trabalhadores, mas penaliza também muito as empresas. O esforço que as empresas fazem para aumentar salários – e a repercursão que isso tem no rendimento líquido disponível que os trabalhadores recebem ao final do mês -, é enorme. Há um gap cada vez maior fruto da carga fiscal.
Enquanto continuarmos a criar amarras e a criar uma luta entre trabalhadores e empresários, como se estivessem em lado opostos da barricada, quase num discurso de ódio entre ambos, não caminharemos para um futuro auspicioso.
Está na altura de o Governo, em sede de concertação social ou na sua comunicação, ter um discurso de que trabalhadores e empresários estão do mesmo lado.
Não tendo maioria, é óbvio que o Governo terá de fazer algumas cedências, mas essas cedências não podem ser naquilo que era estrutural e que estava previsto no plano do partido que ganhou as eleições. A questão da carga fiscal é o que está no centro da discórdia e, pelos vistos, para termos orçamento terá de ser diferente daquilo que a maioria dos portugueses votou.
Não se augura que em 2025 tenhamos medidas que, nesse sentido, incentivem a economia e isso é mau para as empresas, para os portugueses e para o país.