A igualdade é um caminho difícil de quantificar. A lufada de ar fresco das negociações políticas europeias do Verão trouxe-nos a consolidação de um progresso: mulheres na maioria dos cargos de liderança da União Europeia (Ursula Von der Leyen à frente da Comissão, Roberta Metsola enquanto Presidente do Parlamento Europeu e Kaja Kallas como Alta Representante para os Negócios Estrangeiros).
Agora, eis que a igualdade de género sofre uma viragem desanimadora, em resultado do que nos parece ter sido um grave erro de estratégia. Para a composição da nova Comissão Europeia, Von der Leyen pediu a cada Estado-Membro que apresentasse duas opções para o seu potencial comissário, necessariamente um homem e uma mulher, e lhe entregasse depois a competência de escolher conforme a sua preferência.
Do total de 25 machos e 25 fêmeas arrumados aos pares, ficaria só metade (mas Von der Leyen nunca explicou como escolheria os finalistas, pelo que não é de descartar a possibilidade do um-dó-li-tá). O grito equilibrista da líder da Comissão tinha boas intenções: criar um executivo com mais igualdade de género e mais mulheres em merecidas posições de poder e destaque. Ainda assim, a ingenuidade pode pagar-se cara e um objectivo louvável pode, com a estratégia errada, tornar-se contraproducente.
Ora, cada candidato a comissário é proposto pelo respectivo governo do seu Estado-Membro, numa escolha que deve ser autónoma e nunca feita por encomenda – ou, pelo menos, nunca uma tão explícita. Foi, por isso, preciso que especialistas em direito comunitário reabrissem os Tratados aquando das inéditas condições propostas por Von der Leyen, para percebermos os contornos pseudoconstitucionais deste estilo questionável da líder da Comissão “quero, peço, e mando”.
A realidade é que os anos passam, o poder da União cresce, e a Comissão condiciona. Foi esta estratégia de Von der Leyen além das suas competências? Teoricamente, não. Politicamente: nim.
Não é, por isso, de estranhar que o seu condicionamento tenha despertado impulsos soberanos e os governos, pressionados, tenham caído na tentação mais deliciosa perante uma instrução “metediça”: a de, simplesmente, não obedecer.
Conclusão? A esmagadora maioria anunciou apenas um nome masculino (e ainda por cima sem útero) sem qualquer acompanhante. E mesmo aqueles que propuseram mulheres, não o fizeram em formato de dupla. É isso que se faz quando nos dizem que não podemos fazer algo: fazêmo-lo a rir e ainda tiramos fotografias. E a adrelinada do “ser do contra” foi contagiante.
Assim que a Irlanda ameaçou não acatar a regra, outros países foram seguindo a ousadia. Apenas a Bulgária apresentou dois nomes tal como pedido (porque reconheceu o sentido da política, ou talvez para o destaque de aluno bemcomportado). No restante banquete de 25 nomeações apresentadas, foram propostas apenas 5 mulheres numa frente de 19 homens – a composição mais masculina desde há uma década.
Perante o objectivo fracassado, Úrsula Von der Leyen pressionou países como Malta, Roménia e Eslovénia a alterar as suas nomeações, num exercício que podemos recordar de outros tempos quando precisávamos de trocar os cromos da colecção: homens temos repetidos e mulheres valem mais pontos na caderneta.
O poder de veto e a competência para atribuir as pastas aos futuros Comissários foram o seu trunfo natural e braço-de-ferro de última instância. Mesmo na derrota, a autoridade tem peso – e na coordenação política dos 27, peso político é moeda de troca. Pela alteração do nome anunciado, ficou implícita a aliciante recompensa de um portfolio mais pesado. Malta não respondeu ao chamamento, pelo que agora vê-lhe ser atribuído um dos portfolios mais fracos da composição (Juventude, Cultura e Desporto). Surpresa? Nenhuma.
Num momento geopolítico tão desafiante, o ciclo europeu começou assim: com o critério do género a tornar-se a mais importante peça de xadrez no jogo institucional. Na parte que nos toca, bem que beneficiámos por termos Maria Luís Albuquerque na posição de rainha no nosso tabuleiro, responsável agora pela pasta de Serviços Financeiros e de Investimento.
A estratégia escolhida por Von der Leyen criou tensão em vários pontos e pôs a Europa num exercício altamente redutor: contar homens e mulheres pelos dedos das mãos e quantificar o custo-benefício da feminilidade na representação. Gostaríamos que isto fosse apenas uma metáfora, mas infelizmente não anda longe da realidade.
Teria havido seguramente outra forma mais digna para apelar a uma maior inclusão das mulheres na política sem despoletar todo este braço-de-ferro comunitário a céu aberto.
Visto a cru, pode até parecer estranho que o equilíbrio interinstitucional de uma estratosfera complexa como a União Europeia possa ser construído sob o escrutínio do órgãosexual dos nomeados. Mas a verdade é que, quase sempre, a política é mesmo mais simples do que se imagina (até a europeia).
Consultora em políticas públicas e assuntos europeus