O Orçamento Geral do Estado tem em Portugal uma importância sem paralelo. Muitos dirão, em jeito de crítica, que tal se deve ao fato de quase metade da economia e mais de metade dos rendimentos dos Portugueses depender do Estado. É verdade. Mas eu sou dos que aceita esta importância sem grande discussão.
Em 49 anos de Democracia, se o orçamento sempre foi aprovado pelo Parlamento com exceção de duas vezes; e, se em ambas as vezes, a consequência, imediata ou diferida, foi a convocação de eleições legislativas antecipadas seguidas de maioria absoluta (caso Mota Pinto e caso António Costa), então o Orçamento é mesmo relevante. Se, além disso, o orçamento é, em 2023, motivo de adiamento da dissolução do Parlamento, não há dúvida que é imperioso reconhecer que a sua importância se impôs definitivamente na sociedade portuguesa democrática e na nossa prática constitucional.
Por outro lado, é também inegável que, na discussão do Orçamento, a política se torna momentaneamente mais técnica, os excessos das solicitações dos diversos são mais fáceis de justificar. E mesmo tendo em conta o caráter bonapartista ou mesmo medieval das regras públicas de orçamentação pelo método de caixa a que os Estados se deixaram submeter, ainda assim, este é o momento em que o gestor privado se sente mais próximo da causa pública.
Esta proximidade justifica-se quer pela importância que a fixação de objetivos e a respetiva orçamentação representam no ciclo da exploração anual das empresas, quer pela existência de processos orçamentais muito bem definidos nas empresas mais bem-sucedidas que se iniciam com fortes discussões entre as diversas unidades de negócio e que sempre terminam num difícil compromisso orçamental que todos, a partir daí, seguem quase religiosamente.
No Estado também deveria assim ser porque o processo orçamental é igualmente bem definido em tempo e em espaço. O que causa estranheza é que o processo orçamental se inicia não por uma discussão da atividade esperada, mas por uma discussão sobre a receita fiscal onde se leiloa a alocação de impostos. E isso representa uma total inversão de prioridades. Vejamos melhor.
O OE é um orçamento para as funções que o Estado se propõe realizar, sejam elas soberanas e políticas, sejam elas sociais, económicas e de prestação de serviços. Definir o Plano de atividades anual das funções do Estado, detalhar e objetivar essas funções é a essência do Orçamento e isso representa a despesa do Estado. Deveria, pois, ser a despesa do Estado que determinaria a base do processo orçamental. Aliás, nem acredito que o não seja do ponto de vista técnico de quem orçamenta.
Tal como uma empresa, o Estado analisa aquilo que vai “vender” ou “oferecer” ao seu mercado. Que proposta ao nível da diplomacia, da defesa e da segurança, do território, da saúde, da educação, da transição energética, etc. Será com base nessa oferta, nesse plano de ação, que se determinará a base do suporte do Estado à nossa vida coletiva. Será esse tipo de proposta que importará comprometer. O nível de despesa que os cidadãos exigem do Estado é que determinará, com rigor, como essa despesa será financiada. Conforme o Estado entende o que os cidadãos querem, assim o nível de receita deve ser encontrado. Aí deveria residir o cerne da polémica orçamental.
Por isso, o orçamento do Estado é um Orçamento de Despesa e um compromisso de nível de serviço do Estado dirigido à sua comunidade. Só depois deveríamos discutir a receita. Uma parte dessa receita poderá vir de impostos diretos, outra de impostos indiretos ou de taxas. Mas uma parte pode vir dos utilizadores que exigem do Estado esse serviço.
A discussão precedente deveria ser, pois, a alocação entre o serviço do Estado que deve ser financiado pelo utilizador pagador, a parte que deve ser suportada pelo utilizador beneficiário e, finalmente, a parcela que deverá ser paga pelo contribuinte indiferenciado. Se uma parte for financiada por dívida, essa parte deveria ser aquela que representa investimento (na parte que não seja exigido capital próprio), pois será benefício de contribuintes futuros.
Claro que estamos a simplificar em excesso um dos exercícios mais difíceis da política governativa. Mas estamos a fazê-lo para colorir três ideias fundamentais.
Primeiro, um orçamento não é uma discussão de impostos; é uma discussão de despesa pública. Conforme um Estado mais protecionista, mais difícil será financiá-lo.
Segundo, uma cautela fundamental para a despesa operacional porque essa é a parcela da despesa que não se transforma em serviço ao cidadão. Ao Estado exige-se a maior eficácia possível. Maior eficácia que as empresas que podem mitigar a ineficácia no preço.
Terceiro, e mais importante, é a demonstração que não há despesa pública; logo não há serviço do Estado que seja gratuito. Todos os serviços, da educação à saúde, da diplomacia à regulação, da segurança ao transporte, todos os serviços públicos são pagos. Nada é gratuito. E sempre serão pagos: ou pelos utilizadores ou pelos beneficiários ou pelos contribuintes atuais ou futuros. Por isso, sobre todos incide um dever de participação na discussão orçamental.
Se todo o serviço público é, e sempre será, pago pelo utilizador, pelo beneficiário ou pelos contribuintes, cabe aos cidadãos definir o nível da despesa e depois determinar a alocação do seu custo. Esse equilíbrio, em democracia, é naturalmente relevante e cabe aos cidadãos determinar.
É, por isso, que o conceito de gratuitidade dos serviços públicos, como está a ser usado, é uma violação da transparência política. Mas também é uma falha de transparência discutir a alteração de impostos sem discutir a despesa pública. E sobretudo, ambas as demagogias, são um insulto à inteligência coletiva.
Economista