E da República, quem cuida?

A evidência científica aponta num só caminho: os cidadãos não se sentem representados.

Vivemos tempos deslaçados: do culto do individualismo perpetuado pela pandemia, das famílias que crescem longe dos seus, dos cidadãos desacreditados do Estado. É neste contexto que continuamos a solenizar datas como a implantação da República sem refletir ou apreciar verdadeiramente aquilo que celebram. Urge uma visão comum para o Estado republicano hoje, capaz de ser a cola entre todas as gerações, territórios e instituições.

A relação entre o cidadão e o Estado tem sofrido alterações profundas fruto da evolução dos tempos e das necessidades coletivas. Quebrámos com as meta-narrativas que balizavam a vida coletiva do século XX como o Estado, a família e a religião e encontrámos outros propósitos como as alterações climáticas, as desigualdades (sociais, de género, das minorias) e os direitos humanos. 

E, se é certo que conseguimos consolidar a nossa democracia ao longo dos últimos quase 50 anos, este processo foi feito muitas vezes de forma acrítica e sem capacidade para integrar as alterações de pensamento nas nossas ações do dia a dia, deixando uns com ansiedade climática, outros alienados e tantos mais descrentes das instituições políticas. Urge sair da visão imediatista do dia a dia, do voluntarismo no tratamento dos problemas, da superficialidade dos debates e pensar no regime, na big picture.

A evidência científica aponta num só caminho: os cidadãos não se sentem ouvidos ou representados. Não sendo este um fenómeno exclusivamente português, ele traduz-se em níveis de abstenção crescentemente preocupantes. 5 em cada 10 eleitores portugueses não foram às urnas nas últimas eleições legislativas, ou seja, apenas metade da população escolheu quem nos representa hoje na Assembleia da República. A percentagem de jovens na Assembleia da República é de 4% quando esta geração totaliza 16% da população. O número de mulheres no poder local voltou a descer estando, no entanto, em maioria na sociedade. A representação da pluralidade étnica e cultural é nula, num país que tem mais de 750.000 imigrantes. Faltam-nos pensadores, artistas, empresários, trabalhadores e tantos mais do quanto somos feitos em lugares de decisão, porque não é possível integrar todas as visões conflituantes das realidades pessoais, locais, nacional e do mundo sem diversidade na representação. 

À falta de representação, acresce as discussões capturadas por figuras, partidos e grupos de interesse. Os comentadores que se perpetuam no espaço público infinitamente, as personalidades intocáveis do regime, a ideia de que só o partido A ou B representa a classe X ou Y, o monopólio da opinião-solução sobre os temas, a ideia de que só determinada pessoa ou grupo pode ou sabe abordar determinado assunto.

Sem que os cidadãos se sintam representados no poder como na opinião, não é possível pedir-lhes que se sintam parte do sistema. Ao não se sentirem parte do sistema, não é possível pedir-lhes que contribuam para ele. E sem a sua contribuição não é possível que haja uma visão ou missão comum. O que no fundo é o que a República (por oposição à monarquia) representa: um povo consciente do seu poder individual e coletivo, que se une em torno de instituições sobre as quais tem o poder – o Estado -, para dar corpo a uma visão de sociedade criada por todos e para todos, para a qual contribui ativamente com a sua voz e o seu voto.

Ao celebrarmos a República, é necessário não esquecer o seu “porquê”, o seu “como” e, acima de tudo, clareza no rumo que queremos: 

É preciso capacidade de diálogo e consensos entre os partidos políticos. Tem de se exigir aos partidos a capacidade de deixarem as trincheiras da luta partidária e criarem coesão em torno das grandes questões e das grandes decisões do país, com impacto para as gerações atuais e futuras. A capacidade de diálogo e consenso são necessárias em democracia e cruciais para a consolidação de qualquer progresso social. O processo de revisão constitucional deve ser o espelho disso mesmo. 

É preciso rever a lei eleitoral, tornando os lugares de representação mais acessíveis, mais transparentes e mais próximos dos cidadãos. Abrir o direito de voto aos jovens a partir dos 16 anos de forma informada é a lufada de ar fresco que precisamos ao mesmo tempo que se cultiva o dever cívico da participação desde cedo. Abrir a lei a uma geografia eleitoral que respeite a diáspora portuguesa e a organização interna da nossa população é importante para que a premissa “um cidadão-um voto” não se desvirtue. Abrir o direito de voto ao século XXI com o voto eletrónico é matéria de eficiência.

É preciso introduzir mecanismos que garantam que a política é uma missão e não uma profissão. Encarar a política como um dever cívico de representar outros semelhantes é instituir limitações de mandatos e quotas para partes da população que, estando arredados das instituições hoje construirão o futuro amanhã, como os jovens ou os imigrantes. É necessário apostar na literacia política sem o medo paternalista de dar aos cidadãos a informação e conhecimento que precisam para fazer parte das decisões coletivas.

É preciso avançar com a descentralização para garantir que o cidadão sente o Estado presente e o valoriza, onde quer que esteja no nosso território. Para garantir um Estado próximo, ouvinte, responsivo e ágil na resolução dos problemas e na mitigação das desigualdades territoriais, e portanto, para o qual todos quererão contribuir.

Em 1910 a República foi implantada em Portugal. Para o futuro não é preciso inventar a roda, só precisamos de cuidar dela. E todos os gestos contam.